terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Sindicato da Limpeza

Uma grande batalha tinha acabado no coliseu, sob o olhar dos espectadores, homens heróicos vestindo pouca ou nenhuma armadura guerreavam entre si ou enfrentavam bestas terríveis, banhando-se de sangue em busca de glória e riqueza ante as massas ou mesmo da simples liberdade.

Ou pelo menos era assim que acontecia alguns anos atrás.
 

Era ainda o meio da tarde e todos os espectadores já tinham deixado o lugar. Alguns dos gladiadores estavam agachados no canto dos muros, escondendo-se do sol. Quase todos eles tinham barrigas enormes e estavam muito preocupados com suas pressões sanguíneas nesse calor.
 

Por toda a arena as equipes de limpeza trabalhavam como formigas. A maioria catava saquinhos de pipoca e cachorro quente largados nas arquibancadas, enquanto uns poucos andavam pelo chão de terra batido da arena, segurando sacos de lixo e bastões com pregos na ponta.
 

Aquela tarde tinha sido um show especialmente empolgante na verdade, um dos gladiadores tinha derrotado cinco oponentes, deixando um rastro de cadáveres decepados por onde passou. 


Porém, no fim o homem se abaixou, apoiando-se nos seus joelhos, com um som chiado ele tomou um grande fôlego e morreu onde estava. Mais uma triste vítima desse monstro chamado sedentarismo, tinha sido feita, um inocente, ignorante dos perigos escondidos entre as almofadas de sofá e cada pedaço de frango frito.
 

Ele era com certeza um guerreiro realmente formidável, que, para felicidade generalizada da equipe de limpeza, não só tinha espalhado sangue, braços, dedos e tripas de seus inimigos pra todo lado da arena, como também acabou deixando de presente o cadáver de um homem gordo, de cento e vinte quilos completamente cobertos de óleo, pra ser arrastado pra fora da arena.
 

A alegria dos faxineiros era perceptível em cada rosto mal humorado e no silêncio generalizado em que todos trabalhavam – com exceção do velho Postumus, que, feliz, assoviava e dançava num ritmo animado que lhe tinha surgido na mente como um relâmpago! 
Mas, claro, muitas outras vozes também lhe surgiam na cabeça como relâmpagos, e, assim como não são dignas de serem narradas todas as vezes que esses dizeres mentais lhe fizeram vir trabalhar pelado, também não será narrado esse evento em particular. Temos a esperança que por mais musical que o acontecimento em questão seja, o velho Postumus inconscientemente compreenda essa omissão como uma expressão sincera de preocupação e apoio.
 

 No meio da terra batida, porém, dois amigos discutiam, ou um amigo discutia e o outro fingia dar atenção:
 

- Não olha, você me entende, tenho certeza. Eu não estou dizendo que esse é um trabalho ruim, mas...
 

- Isso é exatamente o que você está tentando dizer. – Tiberius olhava pro chão tentando decidir como começar a varrer uma massa vermelha estranha.
 

- Não, não! O que eu estou dizendo é que esse trabalho poderia ter mais vantagens, entendeu? Alguma perspectiva, crescimento na carreira... – Disse Gaius, tentando encontrar coisas pra reclamar enquanto segurava, espetado no garfo de lixo, um braço humano inteiro decepado.
 

- Você esqueceu um pedaço. – Tiberius apontou pra um dedo faltando na mão.
 

- Eu sei, ainda não achei esse. Enfim, quero dizer, estamos nesse negócio a o que? Dez? Doze anos?
 

- Onze. - Tiberius varria o chão sem olhar o amigo.
 

- Onze anos! Esses espetáculos de gladiadores não são mais a mesma coisa, eles não vão melhorar, me entende? O público não quer saber disso mais?! Você não se preocupa com isso? – Gaius apontou o garfo na direção de Tiberius, fazendo o braço espetado esticar o indicador em sua direção.
 

- Sinceramente, acho que você tá reclamando de barriga cheia, nosso trabalho nunca foi tão fácil. Lembra daquela semana de batalhas Persas? Eu virei noites nessa porcaria pra dar fim naqueles elefantes mortos! Foi quase uma semana até alguém sugerir espetinhos de graça pro público!
 

- Você perdeu o fio da meada. Se hoje em dia o problema se resolve só arrastando a sujeira pra fora da arena, quem diabos vai precisar de faxineiros especializados em arenas gladiatoriais? – Gaius colocou o braço decepado no saco de lixo.
 

- Opa, opa, opa! Faxineiros não! Profissionais de limpeza e organização de eventos.
 

- Tanto faz. Eu tinha sonhos maiores caras, eu – Olha aí o dedo bem embaixo de você! - eu esperava subir na vida! Quem sabe algum dos nobres não ficaria impressionado com nossos serviços aqui e contratasse a equipe pra organizar uma orgia?
 

- Ouvi dizer que a grana preta está naqueles banquetes que as pessoas comem até vomitar. – Tiberius disse pelo canto da boca, olhando rapidamente em volta se outro alguém tinha ouvido.
 

- Oh, nem me diga, como eu sonho em limpar vômito do mármore! Mas não! Temos que ficar presos nessa espelunca! Nem a ralé da cidade vêm nisso mais!
 

- Olha, achei uma mão decepada com um anel! – Disse Tiberius limpando a poeira de uma mão decepada.
 

- E eu não culpo ninguém! Quem diabos pagaria pra ver dois gladiadores gordos, correndo em círculos fugindo um do outro, até que um tem um enfarto e cai morto? – Gaius olhava com desprezo pro único cadáver completo caído na arena.
 

Quatro homens, com nenhuma vontade de se sujarem, discutiam em volta do presunto vencedor como iriam encaixar aquele belo corpanzil no pequeno bueiro reservado para os dejetos humanos bem no centro da arena. O cara que resolveu o problema dos elefantes foi chamado, mas descobriram que sua criatividade era um tanto quanto repetitiva, e no caso, bastante antropofágica.
 

- Nisso eu tenho que concordar. Eles realmente ficaram largados depois que proibiram o uso de animais não é? Nada faz um homem entrar em forma quanto uma hiena faminta potencialmente correndo atrás dele toda semana.
 

Gaius tomou a mão decepada das mãos de Tiberius (oh, a ironia!) e puxou o anel até perder o fôlego. - Cara, deixa esse anel pra lá, o braço do gorducho já inchou, é de latão essa porcaria. – Disse antes de jogar a mão num dos homens que agora tinham prendido metade do gordão no bueiro.
 

- Lembra daquela vez que um cara foi pisoteado por uma girafa? Aquela foi uma sujeira a mais que eu não me importei de limpar! – Tiberius disse, num tom de confissão ao amigo, que o tomou pelo ombro com um tapa amigável nas costas.
 

- Viu só? Você também sente falta dos velhos tempos! Quando havia mais oportunidade!
 

- Nah, eu só odeio esses babacas oleosos de armadura que acham que vão ganhar a liberdade matando alguém.
 

Um dos gladiadores encostados na parede arrotou, enquanto o outro tentava se levantar – embora sua bunda imensa não o permitisse.
 

- Tudo que eu estou dizendo é que temos que pensar em alguma coisa. Organizar o pessoal, essa merreca não paga a indignidade que é nosso trabalho! Eu tenho mulher e filhos pra sustentar!
 

- Bom, eu só tenho um gato, mas se estamos falando de um novo plano de assistência dentário, eu estou contigo!
 

- Se vamos fazer isso, precisamos mobilizar os companheiros proletários!


- Chega de opressões imperialistas da classe dominante! - Tiberius franziu a testa - Onde é que a gente aprendeu essas palavras?


Gaius largou os sacos de lixo e andou até o centro da arena. Os quatro homens brigavam sobre quem era o culpado de entupir o bueiro, enquanto Gaius fez seu caminho entre eles e subiu nos ombros do cadáver entalado. Com o garfo de lixo ele bateu no capacete do gladiador morto, fazendo barulho como um sino e gritando pela atenção de todos.
 

- Companheiros! Já não estamos cansados de limpar o que nos dizem pra limpar, quando nos dizem pra limpar?
 

Os homens lentamente se viravam dando atenção ao maluco em cima do cadáver.
 

- Por acaso existe alguém que pode ser chamado de dono desse coliseu, considerando que todo esse espetáculo ridículo só existe por causa do suor de nossas testas? – Gaius olhou preocupado para as armas ainda jogadas no chão perto dos guerreiros - E pela colaboração desses bons companheiros fisicamente incapacitados!
 

Os gladiadores emitiram um rumor de aprovação
 

- Vocês já não estão fartos de tanto desrespeito? Já não se sentem motivados a se juntar a mim nessa revolução?
 

- É! Revolução! – O cara da idéia dos elefantes arrancou sua camisa e colocando-a em chamas na ponta de um garfo de lixo.
 

- Um pouco menos motivados que aquele cara, digo.
 

Um dos homens fez um sinal de reprovação com a cabeça e guiou o rapaz sem camisa pra parte interna do coliseu, dando tapinhas compreensivos em suas costas.
 

- Pois eu digo que é hora de tomarmos o que é nosso! Vamos começar a dizer as pessoas o que e quando nós vamos limpar!
 

As pessoas tiravam suas luvas e concordavam a plenos pulmões com cada frase.
 

- Temos que nos organizar em volta do que fazemos de melhor! Vamos utilizar esse espaço como bem entendermos! Vamos nos organizar em volta da limpeza e vamos limpar os bolsos dessa cidade!

- Nem todo mundo é bom em limpeza!- Uma voz ecoou solitária da arquibancada.
 

- Como? – Gaius apertou os olhos pra enxergar o homem na última fileira de assentos
 

- Eu disse que nem todo mundo é bom em limpeza! O Lucius por exemplo é muito bom em dança moderna interpretativa. Vamos nos organizar em volta disso também? – O homem apontou pra outro que dançava incontrolavelmente ao som de algo que ninguém podia ouvir.
 

As pessoas começaram a conversar entre si em dúvida.
 

- Ahn... Claro, claro, podemos encontrar uso pra isso mais pra frente. Eu acho.
 

- E quanto aos vendedores de salgadinhos? Esse negócio de limpeza é só um bico pra mim sabe? – Disse um homem segurando um algodão doce em cada mão.
 

Tiberius ergueu os braços ao lado do amigo, pedindo atenção:

- Todos aqui terão seu papel no movimento! Precisamos decidir o nosso nome!
 

- Frente unida dos trabalhadores da higiene! – um dos homens na arena gritou.
 

- Esse vai servir. – Tiberius sorriu pro rapaz.
 

- Não! Nós temos que ser os Trabalhadores Unidos na Frente Higiênica! Faz mais sentido que o título diga pra que viemos, não quem somos! – Um faxineiro da arquibancada gritou.
 

- Mesmos porque não somos todos trabalhadores da higiene. – Gritou concordando um pipoqueiro na arquibancada.
 

- Vocês são todos idiotas! Nós somos os Trabalhadores Higiênicos Unidos em Frente! – um faxineiro gritou levantando um esfregão.
 

- Você deve estar louco homem! Claramente esse é nosso hino, não o nosso nome! – Respondeu um dos faxineiros da arquibancada.
 

Quando um homem agarrou outro pelo colarinho, e outros dois começaram a discutir se o hino deveria ser em Lá ou em Ré, Gaius novamente bateu no capacete do cadáver, que tinha descido alguns centímetros pra dentro do bueiro.
 

- Seremos o Sindicato da Limpeza! – Gaius deu um pulo, e o cadáver deslizou lentamente pra dentro do bueiro, até desaparecer completamente, fato que arrancou palmas de todos os presentes.
 

- Que ótimo que todos gostaram tanto assim do nosso nome! A partir de amanhã, teremos mudanças por aqui. Coloquem os gladiadores pra correr voltas na arena! E cortem o açúcar deles!