Meu
cachorro foi embora. Ela era uma Cocker Spaniel, malhada de preto e branca
igual uma vaquinha, quando fica peluda parede uma bolinha de algodão com
orelhas enormes e de pelo ondulado. Ela também era uma das coisas mais doces
que eu já conheci na vida.
Ela
adora qualquer pessoa que dê carinho pra ela, mesmo se for um estranho passando
pelo portão da casa por 5 segundos, nunca mordeu ninguém, mesmo não gostando
muito de crianças ela era tão mansa que fugia delas antes de morder (como
deveria fazer às vezes).
.
As coisas favoritas da vida dela são passear e
tomar banho, agora que ficou mais velhinha dormir parece que alcançou um lugar
nesse grupo seleto de atividades. Eu gostava de coçar a orelha e o pescoço dela
e de bagunçar os pelos na cabeça, tenho certeza que pelo menos as duas
primeiras coisas ela adorava, a terceira só se rolasse um cafuné junto.
Faz
12 anos que temos ela, e eu lembro cada um desses como se fosse ontem. Lembro
do primeiro dia dela em casa, que ela exagerou na ração e ficou com a barriga
tão cheia que parecia que ia explodir. No segundo dia ela entrou atrás da
máquina de lavar e ficou presa, só depois de 10 minutos de choro e 2 infartos
conseguimos encontrar ela. Nessa época o corpo todo dela cabia na minha mão.
Lembro
de quando ela ficou sozinha em casa e descobriu uma caixa cheia de azulejos,
que ela espalhou pelo quintal minúsculo da minha casa antiga, onde ela morava
(quando mudou pra casa nova, com um quintal grande, comeu tanta grama que
vomitou quase um vaso de xaxim). Lembro também do primeiro ano novo que ela
esqueceu do mundo, ganhou um osso de pernil e passou um dia inteiro roendo,
quando terminou precisava urgentemente de um banho.
Aliás,
qual é a do Cocker e da baba que fede? Meu deus, houveram épocas que a habilidade
dela de roubar chicletes das bolsas da minha irmã era completamente aceitável.
Comida
é um assunto a parte, acho mais fácil listar o que ela não comia do que o que
comia, desde um amor à chocolate (eu sei, é tóxico, mas fala isso pra ela),
até, estranhamente, amor à abacate. Já vi até ela chupando uma manga sozinha,
segurando com as próprias patas.
O olhar triste do Cocker é talvez a mais
sofisticada arma de chantagem já inventada pela evolução das espécies, a Mel é
uma especialista em usá-lo. Acho que desenvolvi uma enorme
dessensibilização à cada almoço que eu
resistia à gula dela.
Mas
ela ficou velhinha, 12 anos como eu disse antes, todo mundo fica velho não é?
Quase
nada mudou na verdade, basicamente ela ficou um pouco mais calma e parou de
brincar de comer garrafas pet de 2 litros.
Mais
recentemente surgiram os problemas de saúde, mas essa é uma parte chata e meio
desnecessária de detalhamento.
Eu
contei tudo isso, toda a coisa emocional que me faz debulhar em lágrimas e
arrastar em excesso esse texto, tentando chegar a termos comigo mesmo do porquê
deu estar chorando já há quase 4 horas seguidas.
Não
é meu primeiro bichinho de estimação que morre: fui dono de um número considerável de peixinhos de aquário
suicidas. Meus porquinhos da índia, Arroz e Feijão, poderiam ser protagonistas
de um épico: acredito que no fim, a minha porquinha fêmea já era a Feijão IV, e o Arroz,
enquanto nunca foi substituído, deixou de ser branco e ficava lentamente verde
na barriga e na garganta, sem nenhuma consequência aparente à sua saúde (não
sei, não me pergunte).
Eventualmente
o Arroz sumiu numa tarde que fui pra
escola e minha mãe explicou que tinham levado ele “pra ser solto em uma fazenda”,
na época eu acreditei e fiquei feliz por ele, apesar de meio preocupado de
algum bicho tentar comer ele. Ainda sim ,chorei cada vez que um dos porquinhos
que morria, chorei pelo Arroz também.
De
qualquer forma, cachorro é um assunto diferente. Falam de melhor amigo do homem
pra todo lado, mas acredito que é algo além de amizade. Amigos brigam, se
afastam e se aproximam durante a vida, os cachorros não.
Criar um cachorro trás uma forma muito
diferente de amor para o dono, algo incondicional que se qualquer pessoa de bom
senso pensar a respeito, se sentiria extremamente não digna de receber do
bichinho.
Sendo
honesto, não consigo pensar em nada que possamos fazer pra um cachorro que
justifique o tamanho do amor que ele tem pelos donos. Seja aquele político
corrupto de merda, o cara que fecha todo mundo no trânsito ou um serial killer
maluco: quando eles chegam em casa, seus cães vão abanar o rabo e pedir
atenção, como quem pergunta como foi seu dia.
Em
essência, o cachorro é um bicho bobo que te ama mesmo se você fizer só um
pouquinho pra ele, não importa o tipo de pessoa que você seja. Por isso dói
tanto quando esse bicho bobo fica doente.
Aliás,
talvez isso seja um dos maiores sofrimento. A pessoa aponta onde dói, ela toma
remédios e diz se está se sentindo melhor. Não dá pra dar um copo de água e um
comprimido para o cachorro e falar “toma aí, vai te fazer bem”. Tudo que se
relaciona com veterinário geralmente é uma fonte de incômodo para o cão e de
luta para o dono.
Tomamos
todo o cuidado e demos toda a assistência que era possível à minha cã, mas como
diz a frase famosa, o destino é inexorável. Sempre soube que cachorros vivem
nessa média dos 10-14 anos, tinha consciência disso e de certa forma me
preparava para os anos que não demorariam em vir, mas nunca imaginei que o fim
me seria tão triste.
Poupo
o leitor dos detalhes sórdidos, talvez porque escrevo isso com intenção de
guardar para posteridade e por querer poupar eu próprio quando reencontrar esse
texto, mas digo que uma das piores memórias que tenho na vida é meu cachorro
sofrendo convulsões. Não tanto o ataque em si é a parte ruim, me surpreendi com
meu sangue frio em segurar a onda, mas a impotência da situação, o olhar de
confusão e medo que ela fazia, o coração batendo a mil e a respiração ofegante
e dificultada.
O
primeiro dia que ela teve um ataque foi uma confusão na casa, gente gritando,
meu pai quase caiu da escada enquanto corriam com a coitadinha pro veterinário.
Lembro de andar até a cozinhar e ver os biscoitos dela na bancada, me peguei
pensando se ela estaria viva tempo o bastante pra terminar aquele saco enorme,
hoje sei que a resposta é não.
Minha
cã teve um problema no fígado que é justificável dada a idade dela. Em poucos
dias as convulsões pioraram, ficaram mais frequentes e ela não resistiu, teve
uma parada cardíaca..
Infelizmente
saber disso, de toda parte racional do problema, em nada muda a falta que vou
sentir e o vazio que fica.
Ainda
este ano (2013) eu perdi meu avô, e tenho que relatar, a perda, não importa de
quem seja é um dos piores sentimentos que podemos experimentar, Para cada um
que se vai, fica toda uma gama de cores e sabores de memórias, e pra cada uma
delas, um novo luto, horrível por mérito próprio, de cada jeitinho em
particular.
Chega a ser impressionante como não dá pra se
acostumar com esse sentimento, estar ou não preparado não interessa, é a mesma
coisa, o mesmo abismo, a mesma dificuldade de se afastar do cemitério depois
que fecham a cova, como se existissem elos invisíveis ainda pra serem
dissolvidos.
Meu
pai me disse que a perda é a maior dificuldade em se constituir uma família.
Ele também me disse que de agora em diante não criará nem uma formiga sequer,
mas divago.
O
que eu quero dizer com tudo isso é que vale tudo a pena. As coisas que nós
amamos vão embora, mas por mais clichê que isso soe, as memórias ficam, e são
elas que fazem o que cada pessoa é. Se a perda te faz sentir mal, é porque
antes aquilo fez você se sentir bem, as duas coisas fazem parte da vida, e não
teria graça se fosse de qualquer outra maneira.
No
futuro, quero ter outros cachorros, gatos também, e acho que dar carinho e uma
vida boa pra alguns animais ao longo da sua vida pode ser pouca coisa em troca
do amor que eles dão, mas é um gesto enorme pra esses bichinhos que sofrem
tanto sem ter culpa ou motivo algum.
Bom
enfim, essencialmente estou escrevendo pra mim mesmo, estou usando meu choro de
uma forma produtiva, nem que seja pra me
lembrar desses dias.
Se
eventualmente eu publicar em algum lugar, quero que você, que já perdeu um
bichinho, saiba que eu sinto muito, muito mesmo, e agora eu entendo, me
desculpe por não entender antes, vocês merecem mais abraços do que recebem.
Pra
você que ainda não perdeu, abrace ele muito, dê muito carinho, e, na hora
certa, chore bastante, tudo o que puder chorar, porque depois de alguns anos,
talvez você nem se lembre mais, não da mesma forma, e quando se der conta
disso, vai ter raiva de si mesmo. Ironicamente esse conselho vale tanto pra
pessoas quanto pra bichos.
Sei
que não faz diferença, e na verdade, o
mais próximo de um adeus que pude dar pra ela foi uma coçada na cabeça de boa
noite,, mas se isso aqui vale alguma
coisa..., Tchau Mel!
Eu
amo você muito, muito mesmo - mais do que qualquer coisa que eu consiga
escrever pra você possa mostrar. Vou tentar me lembrar de como você era doce
com as pessoas, de quão fácil era te deixar feliz e de como você sentia que a
gente estava triste e fazia companhia. Espero que realmente exista um lugar pra
onde você ir, algum lugar melhor, que dê pra fazer tudo que você mais gosta.
Desculpa pelas vezes que te tratei de qualquer jeito que não fosse com o mesmo
carinho que você sempre me tratou.
Você
vai fazer falta demais, na minha vida inteira.