domingo, 1 de abril de 2012

A crônica do caminhoneiro templário

Antes de tudo, tenho que confessar: eu juro que tentei fazer alguma coisa com esse caso. Tentei usar ele com o climax de uma história, cheguei até usar-lo só como referência num dialógo (tentando deixar a história mais interessante pelo o que não é não dito) - nada deu certo.

Eu não tenho a mínima capacidade de colocar esse relato no papel, mais do que isso, duvido que qualquer pessoa, usando de qualquer produto, consiga fazer isso. Muito menos eu conseguiria criar uma coisa dessas (aí já penso que uma pessoa devidamente ébria talvez chegasse à coisa igual).


Fato é que essa história aconteceu, é real, por mais surreal que pareça eu estava lá e vi tudo, mesmo que tenha sido tão curta. Então, esse texto não se compromete a ser nada mais do que um simples relato. Penso eu que se o universo fez o favor de mexer seus pauzinhos e juntar tantas coisas improváveis num só lugar, é o dever de todos os observadores de relatarem o acontecido.

Era sábado de manhã, tinha sido um daqueles dias que a faculdade decide te liberar e você volta pra casa (pra cama, sendo mais exato) com um sentimento esquisito de raia alegria, que só quem estuda nesse horário fenômenal conhece.

Eu peguei o ônibus e sentei no único lugar vazio: bem do lado de um rapaz que era tão alto quanto era morbidamente gordo, vestindo uma camiseta apertadissima cor de areia. Eu coloquei os fones, e enquanto olhava pra fora, por metade da janela que o rapaz não tapava, eu tentava decidir se ele mais parecia uma montanha ou uma duna de areia de malha apertada.

Mesmo com música, eu ouvi o murmurinho se formando dentro do ônibus, e logo as velhinhas começaram a resmungar como se alguém tivesse mudado o canal da televisão bem quando o Silvio Santos ia sortear a última bola da telesena do mês.

Eu tive que ficar em pé no meu lugar pra ver do que se tratava, mas quando virei o corpo, e olhei pro lado de fora do ônibus, eu vi a situação mais pirotesca do ano.

A cena era a seguinte: parados no sentido oposto da estrada, no meio da BR, estava um caminhão e um carro. Deste último saiu correndo um homem, que para descrever ao pé da letra, era um desses caras com mais de trinta anos que ainda usa bermuda e boné.

Descendo da boléia, vindo correndo a toda velocidade atrás do rapaz de boné, vinha o caminhoneiro: um cara que não poderia ser descrito com outra palavra além de normal. Ele usava uma calça jeans azul e uma camisa branca, normais, era de altura média, normal, e vinha segurando um pedaço de pau de um metro e meio, normal?

Todo mundo já viu uma briga de de trânsito: volta e meia no centro da cidade um cara desce do carro, quebra o parabrisa do carro de trás com uma chave de roda e mais um motorista jamais usará a buzina atoa de novo.
O que a gente não vê todo dia é um caminhoneiro segurando um porrete com as duas mãos, com os braços pra cima da cabeça, posição de um verdadeiro espadachim, posta di falcone, me ensinou um filme medieval horroroso. Não preciso dizer a empolgação que eu comecei a assistir a situação.

O rapaz de boné correu até o acostamento da estrada, pegando quatro tijolos de uma pilha de material de construção, enquanto isso o caminhoneiro medieval ainda precisava correr toda a extensão do caminhão pra conseguir esmagar o crânio embonezado do motorista.

Um tijolo saiu voando, direto para a cabeça do caminhoneiro, atirado de uns seis metros, mas ainda com uma força e precisão que me sujerem toda uma habilidade do rapaz em jogar tijolos em outras pessoas. Antes de receber o balaço no nariz, num movimento absurdamente incrivel, o caminhoneiro baixo o pedaço de pau, defendendo o tijolo, que ricocheteou pra longe.

A torcida de uma arena de coliseu vibrou dentro da minha cabeça e as velhinhas do ônibus resmungavam como se estivessem reprovando a neta que pintou o cabelo de verde.

Encarnando o Conan, o caminhoneiro se aproximava cada vez mais de seu alvo. O cara de boné não se intimidou, jogando mais dois tijolos em rápida sucessão: um acertou no ombro e o outro no joelho, o caminhoneiro agachou na estrada - ele também sentia dor!

O rapaz de boné se aproximou, erguendo a mão com um último tijolo, preparando o seu golpe de misericórdia. O braço foi pra trás, o tijolo já atrás da cabeça, mas, bem quando ia deixar cair o golpe final, ele também caiu de joelhos. O caminhoneiro templário o conseguiu acertar bem na canela.

Nesse momento, num só pulo, o caminhoneiro se levantou e, ainda segurando a excalibur de pau, correu de volta pra boléia de seu veículo,  O caminhão ia embora sozinho, andando preguiçoso na suave descida que era aquele trecho da estrada. A ironia é um negócio poderoso, o caminhoneiro se dedicou tanto ao seu novo emprego na tabúla redonda, que esqueceu de puxar o freio de mão antes de sair pra dar porrada no outro motorista.

Ainda de joelhos no asfalto, o rapaz de boné segurava o seu último tijolo enquanto observava seu atacante fugir. Sem pestanejar, ele atirou o bloco em uma parabola no alto, numa distância muito maior que as outras tijoladas - a pedra girou no ar, e num arco perfeito acertou o caminhoneiro no meio das costas, o jogando de joelhos no asfalto, enquanto seu caminhão decidiu continuar as entregas sem motorista.

Esse é o fim, pelo menos até onde eu vi - tudo isso aconteceu em menos de um minuto, o ônibus passou direto pelo lugar, e mal dava pra ver os dois olhando pra trás. Eu não tenho a mínima autoridade pra dizer se um lado ou outro ganhou, muito menos inventar nada.

Mas que seria engraçado ver o caminhão invadindo o campinho de futebol na beira da estrada, enquanto os dois ainda se degladiavam em cima da carga, ah isso seria.

De qualquer forma, se mais alguma coisa digna de menção aconteceu naquele ônibus, foi uma menina segurando um picolé em uma mão, e um celular em outra reclamando pro trocador do ônibus - “Ninguém chama ajuda!”

segunda-feira, 19 de março de 2012

Climão

-(...) mas enfim, eu quero ser cremado sabe? Essa idéia de ficar debaixo da terra largado pras minhocas me incomoda.
- Sei, eu te entendo. Eu costumava querer ser cremado também, mas tive uma idéia bem melhor pra quando eu morrer.
- Qual?
- Vou pedir pra ser enterrado de óculos escuros e braços cruzados. O funeral vai ser muito tenso. E, alguns anos depois, quando o coveiro finalmente for abrir o caixão pra limpar meus ossos da cripta, vai ser o dia mais impressionante de toda a vida dele.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Postal

Hoje de manhã encontrei uma carta de amor debaixo da porta.
Dentro de um envelope perfeitamente branco veio um papel, cuidadosamente dobrado várias vezes, com apenas uma frase escrita em letras pretas: Eu te amo.
Por um momento eu não conseguia me mover, as letras pesavam aos meus olhos, meu coração palpitava, as pernas amoleceram e eu sentia minha barriga fria.
E enquanto eu fiquei lá em pé, aéreo, ainda com o papel e o envelope em mãos, eu conseguia pensar uma só coisa: "Nunca mais vou abrir a porta do porão".

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A maior conquista de um homem

"É dificil pensar em um momento da vida em que estejamos quites com o nosso sono. Crianças pequenas acordam cedo demais, adolescentes não acordam, jovens pais não dormem por causa do barulho que fazem os filhos e então, pouco mais tarde, não conseguem dormir porque não ouvem o barulho de seus filhos voltando para casa tarde da noite. Quando envelhecemos, começamos a acordar tão cedo quanto faziamos quando éramos crianças pequenas, até que finalmente vamos dormir para sempre. O que soa bastante interessante algumas vezes, exceto pelo fato que me enterrarão perto de algum jardim-de-infância e serei acordado do Reino dos Mortos pelos gritos e choros e pulos de  crianças em cima de mim a qualquer hora do dia e da noite." - John O'Farrel, A maior conquista de um homem, pg. 98-99

domingo, 5 de fevereiro de 2012

História de Mãe

Minha mãe me contou essa história quando eu era pequeno, ocasionalmente eu me lembrava dela, nessas ocasiões eu sentia arrepios perdia o sono por algumas noites. 

Enquanto morava na capital, longe das áreas rurais de onde vinho, minha mãe tinha uma vizinha nervosa e amarga.


A vizinha se chamava Norma, era uma mulher solitária que tinha se mudado de uma vila do interior pra cidade grande carregando apenas seus animais de estimação, que foram motivo o suficiente pra minha mãe começar uma amizade com a mulher, apesar da personalidade difícil dela.
 

Um dia, a mulher ficou doente, e perguntou se minha mãe poderia vir até sua casa e cuidar de seu cachorro e papagaio. Ao ver em que condições a mulher se encontrava, minha mãe se ofereceu a dormir na casa dela, pro caso dela precisar de alguma ajuda durante a noite.
 

Minha mãe conta que chegou a perguntar o que ela estava sentindo, Norma só respondeu que não vinha conseguindo dormir o bastante, que estava cansada o tempo todo, e a conversa morreu aí.
 

Norma ficou no seu quarto enquanto minha mãe dormiu num quarto ao lado, ou pelo menos tentou dormir.
 

Naquela noite, minha mãe diz ter ouvido um barulho metálico vindo da cozinha, um tilintar leve, como uma caixinha de música, ou um daqueles sinos que as pessoas penduram na janela sendo soprado pelo vento.
 

Ela se levantou e foi investigar, mas era uma noite escura e entre as velas já apagadas e a falta de luz elétrica na casa, não se via mais que um palmo à frente do nariz.
 

Minha mãe voltou pro quarto, e aterrorizada, sentou na cama, no escuro, tentando imaginar o que poderia fazer aquele som. Ela decidiu que deveria dar uma olhada na vizinha.
 

A porta do quarto de Norma se abriu com um rangido lento, e na escuridão, bem como minha mãe, Norma estava sentada na cama, olhando fixamente pra frente, branca como um lençol. Minha mãe lhe perguntou se ela também havia ouvido o barulho – “Todas as noites é assim”, ela respondeu com um sorriso triste.
 

Norma disse que se deixasse pratos sujos na pia, como havia deixado naquele dia, algumas noites ela podia ouvir barulhos como se tudo estivesse sendo lavado, que ela se levantava da cama apenas pra não encontrar ninguém na cozinha.

Enquanto conversavam ambas ouviram a água da pia de sua área de serviço espirrando, como se alguém estivesse lavando suas roupas. Elas chegaram a se levantar e, juntas, foram ver se tinha alguém no quintal, não encontraram ninguém.
 

Minha mãe puxou o colchão da cama que lhe fora preparada para o chão, arrastando-o até o lado da cama de Norma, fechou o quarto em que as duas estavam e se deitou, mal conseguindo dormir naquela noite. Ela se levantou cedo na manhã seguinte pra ver os animais, a vizinha ainda dormia, abriu a porta do quarto devagar e  deixou a casa da vizinha arrumada, com tudo em seu devido lugar, voltando pra sua própria casa pra começar um novo dia de tarefas normais de casa.

Naquela tarde a vizinha veio em sua casa pra agradecer a ajuda, e as duas começaram a conversar.  Norma disse que vinha se sentido tão insegura com as experiências vividas naquela casa, que pensou que se contasse pra outras pessoas, seria taxada como louca - e, até a última noite, teria concordado com todos que lhe colocassem numa camisa de força.


Porém, agora ela tinha certeza que outras pessoas também ouviam os sons, ela ainda era normal.
 

Baixando a voz e falando quase num cochicho, Norma contou que numa noite, quando tinha acabado de se mudar para a nova casa, bem quando se preparava pra dormir, ela entrou em seu quarto e encontrou uma mulher parada lá dentro.

O que ela viu foi uma mulher normal, nada de vestidos brancos esvoaçantes ou de corpos transparentes, apenas um rosto amarrotado de quem esteve chorando.

Antes que pudesse ter qualquer reação, a desconhecida se virou e perguntou numa voz clara – Você também mora aqui? – enquanto tomava um passo em direção à dona da casa.

Desnecessário dizer que Norma bateu a porta na cara da pobre aparição e se escondeu na sala, acordada a noite toda.
 

Minha mãe disse que ela deveria se mudar, a vizinha disse que já ter ligado pra filha de manhã, bem quanto tinha acordado, e que, se possível, no outro dia já estaria fora dali. Minha mãe preparou uma cama, e ela dormiu na nossa casa.
 

Naquela noite, certo como um relógio, o barulho veio de novo, mas o que quer que fosse estava na casa da vizinha. Você realmente teria que fazer silêncio pra ouvir alguma coisa se estivesse na casa da minha mãe, e de jeito nenhum alguma das duas iria sair pro nosso quintal pra tentar ouvir melhor.
 

Uma vela se acendeu dentro da casa da vizinha, perto de uma das janelas que dava direto pra sala da minha mãe. Elas fecharam as cortinas e, olhando só pelas frestas, observaram enquanto a luz se movia dentro da casa, como se alguém estivesse andando pela casa.
 

Minha mãe, tentando fazer pouco caso da situação disse:
 

- Acho que está sentindo sua falta lá hein?! Melhor você voltar!
 

- Tenho certeza que ainda vai aparecer outra pessoa pra essa coisa brincar. – as duas dividiram um riso nervoso.
 

A luz foi ficando mais fraca, até apagar, e isso foi tudo que aconteceu naquela noite.
 

A filha de norma e o marido apareceram com uma caminhonete, e até meio dia já tinham carregado os poucos pertences da casa, eles nunca perguntaram o porquê da mudança repentina, ou da pressa. Norma agradeceu minha mãe, e perguntou se ela poderia cuidar de seu cachorro e seu papagaio, coisa que ela ficou feliz em fazer.
 

Alguns dias depois, minha mãe acordou suando frio, era o barulho de novo, dessa vez estava perto, dentro de casa. Ela se levantou da cama, e fez seu caminho por todos os cômodos, acendendo as luzes da casa, que ao contrário das da vizinha, eram luzes elétricas.
 

Ela andou até a cozinha, e na escuridão, ela viu alguma coisa, a origem do som metálico que tirou o sono de sua vizinha tantas noites: o papagaio.
 

Minha mãe chegou a telefonar para a filha alguns meses depois, ela soube que Norma continuou sem dormir na casa nova, eventualmente sofreu um colapso nervoso e teve que ser internada pra que pudesse ter algumas horas de sono. Se Norma chegou a explicar o seu sofrimento, ou se dizia algo nesse estágio, sua filha não disse, ou teve vergonha de dizer.
 

Minha mãe nunca soube dizer se o que elas ouviram era apenas o som do papagaio, ou alguma coisa mais.
 

Quer dizer, o papagaio repete sons de coisas que ele ouve várias vezes, mas, em específico, aquele som de tilintar? Ela disse que nunca teve a mesma qualidade metálica como que ela ouviu na casa da vizinha. No final, imitação do papagaio era um assovio, por mais leve que fosse a imitação de um sino, ainda soava como um assovio.
 

Por outro lado, é muito fácil fazer esse tipo de julgamento em plena luz do sol. Ninguém sabe o que são noites e mais noites ouvindo esse mesmo som. Qualquer que fosse sua origem, depois de algumas noites em claro, quem pode saber o que ele poderia fazer com a mente de uma pessoa? O quanto a pessoa ouviria ele dentro ou fora de seus ouvidos, ou o quanto a pessoa poderia ver mulheres espectrais dentro ou fora de sua cabeça.

O problema é que nada disso explica a luz que elas viram na janela aquela noite. Nem explica, como minha mãe disse ter visto na manhã que dormiu lá, a pia vazia, e os pratos ainda úmidos no escorredor.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Sindicato da Limpeza

Uma grande batalha tinha acabado no coliseu, sob o olhar dos espectadores, homens heróicos vestindo pouca ou nenhuma armadura guerreavam entre si ou enfrentavam bestas terríveis, banhando-se de sangue em busca de glória e riqueza ante as massas ou mesmo da simples liberdade.

Ou pelo menos era assim que acontecia alguns anos atrás.
 

Era ainda o meio da tarde e todos os espectadores já tinham deixado o lugar. Alguns dos gladiadores estavam agachados no canto dos muros, escondendo-se do sol. Quase todos eles tinham barrigas enormes e estavam muito preocupados com suas pressões sanguíneas nesse calor.
 

Por toda a arena as equipes de limpeza trabalhavam como formigas. A maioria catava saquinhos de pipoca e cachorro quente largados nas arquibancadas, enquanto uns poucos andavam pelo chão de terra batido da arena, segurando sacos de lixo e bastões com pregos na ponta.
 

Aquela tarde tinha sido um show especialmente empolgante na verdade, um dos gladiadores tinha derrotado cinco oponentes, deixando um rastro de cadáveres decepados por onde passou. 


Porém, no fim o homem se abaixou, apoiando-se nos seus joelhos, com um som chiado ele tomou um grande fôlego e morreu onde estava. Mais uma triste vítima desse monstro chamado sedentarismo, tinha sido feita, um inocente, ignorante dos perigos escondidos entre as almofadas de sofá e cada pedaço de frango frito.
 

Ele era com certeza um guerreiro realmente formidável, que, para felicidade generalizada da equipe de limpeza, não só tinha espalhado sangue, braços, dedos e tripas de seus inimigos pra todo lado da arena, como também acabou deixando de presente o cadáver de um homem gordo, de cento e vinte quilos completamente cobertos de óleo, pra ser arrastado pra fora da arena.
 

A alegria dos faxineiros era perceptível em cada rosto mal humorado e no silêncio generalizado em que todos trabalhavam – com exceção do velho Postumus, que, feliz, assoviava e dançava num ritmo animado que lhe tinha surgido na mente como um relâmpago! 
Mas, claro, muitas outras vozes também lhe surgiam na cabeça como relâmpagos, e, assim como não são dignas de serem narradas todas as vezes que esses dizeres mentais lhe fizeram vir trabalhar pelado, também não será narrado esse evento em particular. Temos a esperança que por mais musical que o acontecimento em questão seja, o velho Postumus inconscientemente compreenda essa omissão como uma expressão sincera de preocupação e apoio.
 

 No meio da terra batida, porém, dois amigos discutiam, ou um amigo discutia e o outro fingia dar atenção:
 

- Não olha, você me entende, tenho certeza. Eu não estou dizendo que esse é um trabalho ruim, mas...
 

- Isso é exatamente o que você está tentando dizer. – Tiberius olhava pro chão tentando decidir como começar a varrer uma massa vermelha estranha.
 

- Não, não! O que eu estou dizendo é que esse trabalho poderia ter mais vantagens, entendeu? Alguma perspectiva, crescimento na carreira... – Disse Gaius, tentando encontrar coisas pra reclamar enquanto segurava, espetado no garfo de lixo, um braço humano inteiro decepado.
 

- Você esqueceu um pedaço. – Tiberius apontou pra um dedo faltando na mão.
 

- Eu sei, ainda não achei esse. Enfim, quero dizer, estamos nesse negócio a o que? Dez? Doze anos?
 

- Onze. - Tiberius varria o chão sem olhar o amigo.
 

- Onze anos! Esses espetáculos de gladiadores não são mais a mesma coisa, eles não vão melhorar, me entende? O público não quer saber disso mais?! Você não se preocupa com isso? – Gaius apontou o garfo na direção de Tiberius, fazendo o braço espetado esticar o indicador em sua direção.
 

- Sinceramente, acho que você tá reclamando de barriga cheia, nosso trabalho nunca foi tão fácil. Lembra daquela semana de batalhas Persas? Eu virei noites nessa porcaria pra dar fim naqueles elefantes mortos! Foi quase uma semana até alguém sugerir espetinhos de graça pro público!
 

- Você perdeu o fio da meada. Se hoje em dia o problema se resolve só arrastando a sujeira pra fora da arena, quem diabos vai precisar de faxineiros especializados em arenas gladiatoriais? – Gaius colocou o braço decepado no saco de lixo.
 

- Opa, opa, opa! Faxineiros não! Profissionais de limpeza e organização de eventos.
 

- Tanto faz. Eu tinha sonhos maiores caras, eu – Olha aí o dedo bem embaixo de você! - eu esperava subir na vida! Quem sabe algum dos nobres não ficaria impressionado com nossos serviços aqui e contratasse a equipe pra organizar uma orgia?
 

- Ouvi dizer que a grana preta está naqueles banquetes que as pessoas comem até vomitar. – Tiberius disse pelo canto da boca, olhando rapidamente em volta se outro alguém tinha ouvido.
 

- Oh, nem me diga, como eu sonho em limpar vômito do mármore! Mas não! Temos que ficar presos nessa espelunca! Nem a ralé da cidade vêm nisso mais!
 

- Olha, achei uma mão decepada com um anel! – Disse Tiberius limpando a poeira de uma mão decepada.
 

- E eu não culpo ninguém! Quem diabos pagaria pra ver dois gladiadores gordos, correndo em círculos fugindo um do outro, até que um tem um enfarto e cai morto? – Gaius olhava com desprezo pro único cadáver completo caído na arena.
 

Quatro homens, com nenhuma vontade de se sujarem, discutiam em volta do presunto vencedor como iriam encaixar aquele belo corpanzil no pequeno bueiro reservado para os dejetos humanos bem no centro da arena. O cara que resolveu o problema dos elefantes foi chamado, mas descobriram que sua criatividade era um tanto quanto repetitiva, e no caso, bastante antropofágica.
 

- Nisso eu tenho que concordar. Eles realmente ficaram largados depois que proibiram o uso de animais não é? Nada faz um homem entrar em forma quanto uma hiena faminta potencialmente correndo atrás dele toda semana.
 

Gaius tomou a mão decepada das mãos de Tiberius (oh, a ironia!) e puxou o anel até perder o fôlego. - Cara, deixa esse anel pra lá, o braço do gorducho já inchou, é de latão essa porcaria. – Disse antes de jogar a mão num dos homens que agora tinham prendido metade do gordão no bueiro.
 

- Lembra daquela vez que um cara foi pisoteado por uma girafa? Aquela foi uma sujeira a mais que eu não me importei de limpar! – Tiberius disse, num tom de confissão ao amigo, que o tomou pelo ombro com um tapa amigável nas costas.
 

- Viu só? Você também sente falta dos velhos tempos! Quando havia mais oportunidade!
 

- Nah, eu só odeio esses babacas oleosos de armadura que acham que vão ganhar a liberdade matando alguém.
 

Um dos gladiadores encostados na parede arrotou, enquanto o outro tentava se levantar – embora sua bunda imensa não o permitisse.
 

- Tudo que eu estou dizendo é que temos que pensar em alguma coisa. Organizar o pessoal, essa merreca não paga a indignidade que é nosso trabalho! Eu tenho mulher e filhos pra sustentar!
 

- Bom, eu só tenho um gato, mas se estamos falando de um novo plano de assistência dentário, eu estou contigo!
 

- Se vamos fazer isso, precisamos mobilizar os companheiros proletários!


- Chega de opressões imperialistas da classe dominante! - Tiberius franziu a testa - Onde é que a gente aprendeu essas palavras?


Gaius largou os sacos de lixo e andou até o centro da arena. Os quatro homens brigavam sobre quem era o culpado de entupir o bueiro, enquanto Gaius fez seu caminho entre eles e subiu nos ombros do cadáver entalado. Com o garfo de lixo ele bateu no capacete do gladiador morto, fazendo barulho como um sino e gritando pela atenção de todos.
 

- Companheiros! Já não estamos cansados de limpar o que nos dizem pra limpar, quando nos dizem pra limpar?
 

Os homens lentamente se viravam dando atenção ao maluco em cima do cadáver.
 

- Por acaso existe alguém que pode ser chamado de dono desse coliseu, considerando que todo esse espetáculo ridículo só existe por causa do suor de nossas testas? – Gaius olhou preocupado para as armas ainda jogadas no chão perto dos guerreiros - E pela colaboração desses bons companheiros fisicamente incapacitados!
 

Os gladiadores emitiram um rumor de aprovação
 

- Vocês já não estão fartos de tanto desrespeito? Já não se sentem motivados a se juntar a mim nessa revolução?
 

- É! Revolução! – O cara da idéia dos elefantes arrancou sua camisa e colocando-a em chamas na ponta de um garfo de lixo.
 

- Um pouco menos motivados que aquele cara, digo.
 

Um dos homens fez um sinal de reprovação com a cabeça e guiou o rapaz sem camisa pra parte interna do coliseu, dando tapinhas compreensivos em suas costas.
 

- Pois eu digo que é hora de tomarmos o que é nosso! Vamos começar a dizer as pessoas o que e quando nós vamos limpar!
 

As pessoas tiravam suas luvas e concordavam a plenos pulmões com cada frase.
 

- Temos que nos organizar em volta do que fazemos de melhor! Vamos utilizar esse espaço como bem entendermos! Vamos nos organizar em volta da limpeza e vamos limpar os bolsos dessa cidade!

- Nem todo mundo é bom em limpeza!- Uma voz ecoou solitária da arquibancada.
 

- Como? – Gaius apertou os olhos pra enxergar o homem na última fileira de assentos
 

- Eu disse que nem todo mundo é bom em limpeza! O Lucius por exemplo é muito bom em dança moderna interpretativa. Vamos nos organizar em volta disso também? – O homem apontou pra outro que dançava incontrolavelmente ao som de algo que ninguém podia ouvir.
 

As pessoas começaram a conversar entre si em dúvida.
 

- Ahn... Claro, claro, podemos encontrar uso pra isso mais pra frente. Eu acho.
 

- E quanto aos vendedores de salgadinhos? Esse negócio de limpeza é só um bico pra mim sabe? – Disse um homem segurando um algodão doce em cada mão.
 

Tiberius ergueu os braços ao lado do amigo, pedindo atenção:

- Todos aqui terão seu papel no movimento! Precisamos decidir o nosso nome!
 

- Frente unida dos trabalhadores da higiene! – um dos homens na arena gritou.
 

- Esse vai servir. – Tiberius sorriu pro rapaz.
 

- Não! Nós temos que ser os Trabalhadores Unidos na Frente Higiênica! Faz mais sentido que o título diga pra que viemos, não quem somos! – Um faxineiro da arquibancada gritou.
 

- Mesmos porque não somos todos trabalhadores da higiene. – Gritou concordando um pipoqueiro na arquibancada.
 

- Vocês são todos idiotas! Nós somos os Trabalhadores Higiênicos Unidos em Frente! – um faxineiro gritou levantando um esfregão.
 

- Você deve estar louco homem! Claramente esse é nosso hino, não o nosso nome! – Respondeu um dos faxineiros da arquibancada.
 

Quando um homem agarrou outro pelo colarinho, e outros dois começaram a discutir se o hino deveria ser em Lá ou em Ré, Gaius novamente bateu no capacete do cadáver, que tinha descido alguns centímetros pra dentro do bueiro.
 

- Seremos o Sindicato da Limpeza! – Gaius deu um pulo, e o cadáver deslizou lentamente pra dentro do bueiro, até desaparecer completamente, fato que arrancou palmas de todos os presentes.
 

- Que ótimo que todos gostaram tanto assim do nosso nome! A partir de amanhã, teremos mudanças por aqui. Coloquem os gladiadores pra correr voltas na arena! E cortem o açúcar deles!