terça-feira, 25 de outubro de 2011

Uma conversa em um carro

- Eu já te contei a minha nova tática infalível pra arrumar mulher?
- Puta merda, lá vamos nós...
- Lá vamos nós o que porra?! Nossa senhora, não posso te falar nada que você já chega com seus preconceitos pra cima de mim?
- Preconceitos?
- Preconceitos sim!
- Eu já te falei isso mil vezes: o fato de você ser anão e ruivo não tem nenhuma ligação com o fato de eu te achar um idiota sociopata. Mesmo quando você realmente é as duas coisas.
- Ah, e só por coincidência você menciona minha altura e meu cabelo também né?!
- É, me desculpa sobre isso. Eu também esqueci de falar das suas sardas estúpidas.
- Você realmente acha que não é um plano infalível não é?
- Claro que não é infalível! Eu conheço seus planos, fui parte de muitos deles, e tenho cicatrizes pra provar o quão não infalíveis eles são!
- Pois então fica de olho aí na direção e escuta esse, antes que eu decida deixar cicatrizes mais profundas do que as que você já tem.
- Mais do que as psicológicas? Pelo amor de Deus, não me faça ficar esperando, fale então.
- Então, a tática, é bem simples, se você quer arrumar uma garota, sem nenhuma chance de dar errado, pegue uma gordona!
- Sei... De quão gorda estamos falando?
- Poisé, aí entra a sutileza da questão, depende bastante. Gorda o suficiente pra não ter outras opções, mas ainda recuperável saca?
- Bom, eu saquei a falta de opções...
- Recuperável cara! Como em “o cérebro dela não é feito de marshmallow, com dieta e exercícios nós podemos corrigir isso”.
- “Nós”? Nós quem? Você?!
- Eu e a gordona oras, quem mais?
- Ok, agora realmente quero ouvir isso. Você é o que, o mini personal trainer delas?
- Entendo que seja complicado pra você imaginar, sendo burro e não criativo, mas é bem simples ó: eu me aproximo dessas baleias encalhadas e me torno íntimo delas.
- Anão ruivo... Sério que existe esse nível de desespero?
- Falta de opções, como eu disse antes, é bem mais fácil do que você imagina.
- Tá mas, nessa “aproximada” você chega a...?
- Não. Não meu Deus não! É tudo um processo, eu tenho etapas, eu tenho dignidade! Jamais me sujeitaria a isso! Apesar que realmente é difícil afastar as intenções delas.
- Eu não acredito que vou perguntar isso, mas como você “afasta” elas?
- É tudo uma questão de ser dedicado aos seus fins, você realmente tem que viver isso. Da mesma forma que ela vai me acompanhar em corridas matinais e o máximo que vai encontrar pra comer na minha casa vai ser legumes crus, eu digo pra ela que sou cristão do décimo sétimo dia, alguma merda religiosa desse tipo. Digo que estou me guardando pra uma pessoa especial, apenas depois do casamento. Eu até crio essa perspectiva de casamento, viu?
- Juro que não vi. E pra que isso aí afinal? Parece que é trabalho demais pra uma foda.
- “Trabalho demais”? Deus, esse é o problema cm os homens de hoje! Todo mundo já quer tudo pronto! Existe todo um prazer em cuidar e cultivar meu amigo.
- Em criar dependência emocional, enganar e criar um ideal de beleza fútil.
- Veja isso como você quiser, mas fato é que estou dando uma coisa boa pra elas! Saúde, auto-estima, bons hábitos, uma contagem de glicose no sangue com apenas duas casas decimais...
- Ah claro... E em troca elas te dão algo legal também né.
- Como você não pode acreditar! Imagina aí: toda aquela raiva reprimida, aquela cascata de hormônios em mudanças metabólicas, a privação de chocolate, uma cama...
- Ew. Imagino... Tenho calafrios imaginando inclusive...
- Não precisa ter! Elas já são malhadas nesse ponto, acha que eu não espero para colher os frutos.
- Poisé, o nojo é mais porque você está lá também. Mas enfim, vamos ver se eu entendi: você se aproxima de garotas morbidamente obesas, torna elas emocionalmente apegadas e força a elas uma dieta com o único propósito de criar um padrão de beleza específico para satisfazer suas próprias necessidades sexuais?
- Em resumo, basicamente isso aí.
- E incrivelmente, não é tão ruim quanto aquele seu ultimo lance com as garotas cegas.
- Poisé, aquilo era uma furada desde o início! Claro, elas não conseguem enxergar as sardas, mas a minha voz continua vindo de baixo.
- Imagino se algum dia você vai olhar pra trás e sentir orgulho do que você faz.
- Oh não, claro que não... Eu sou um reles escultor senhor. Eu apenas tiro a estátua que já existia dentro do monte de banha!
- Deus... Pegue suas coisas no banco de trás, nós chegamos ao prédio.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Flash

Eu fiquei de pé no banheiro e me barbeei.
Meu reflexo no espelho não.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A Longa Viagem 3

- Capítulo 2: Os que causam problemas e os que limpam a bagunça

Os magos são um pessoal muito esquisito se você quer minha opinião. Nenhuma cidade ou vilarejo duraria sequer um dia sem eles, no entanto, ironicamente, eles são os primeiros a serem culpados quando alguma coisa dá errado.

Os livros de história nos contam de dias a muito passados, dias em que a humanidade tinha espaço pra respirar. Sem árvores de trezentos metros, homens gorila homicidas, nem nada do tipo. Era uma época mais simples, porém com seus próprios tipos de problemas, as pessoas viviam sem o luxo das armas de fogo, rádios, geladeiras ou qualquer outra comodidade do mundo atual.

Então vieram os magos, os grandes responsáveis por consertar a sociedade. Essencialmente eram grandes engenheiros, capazes de preencher as lacunas de suas invenções com magia.

O desenvolvimento nessa época foi tamanho que todo mundo chegou a atingir certo grau de controle na magia. Acreditem se quiser, já encontrei velhos documentos com conjuntos de regras descrevendo um jogos infantis antigos. Um muito popular basicamente envolvia crianças atirando bolas de fogo umas nas outras. Soa familiar pra alguém?

- Para teorias antropológicas sobre o jogo em questão, recomendo: GOODMAN.White. Queimada: o sadismo em uma esfera de borracha. -

Como tratado anteriormente, a Teoria da Energia Ambiental forma a base da teoria mágica moderna, no seu postulado principal, afirma que a magia existe ao nosso redor, de uma forma muito pura e difusa. Nessa fase apenas as plantas podem aproveitá-la, usando-a para acelerar e melhorar seu crescimento. Daí parte a Teoria da Cadeia Alimentar, tão presente no senso comum do homem moderno. O caso é que nossos antepassados não sabiam de nada disso!

Chega a ser triste imaginar que eles não tinham percebido em que direção estavam indo.

Seres humanos desenvolvem suas capacidades mágicas a partir de sua dieta, bem como todos outros animais, a diferença é que podemos aproveitá-la pra fazer todo o tipo de coisa maluca. Nosso problema com isso tudo é simples: não só nós não sabemos quando parar. 

Nós temos uma tendência natural a ser descuidados, sequer imaginamos onde toda a magia residual de nossos feitiços acaba. Os magos dos tempos antigos costumavam vazar magia residual como torneiras quebradas.

No início os efeitos não eram tão gritantes, mas com o tempo, o uso de todos aqueles feitiços e a criação de todos os itens e artefatos definitivamente deixou uma marca. A magia residual de nossas indústrias e de nossos próprios feitiços começou a infiltrar-se de volta na cadeia alimentar, quantidades absurdas integradas de uma vez só, que num processo natural demorariam séculos pra dar a volta no ciclo de absorção e putrefação.

Árvores ficaram mais altas, os animais ficaram mais ferozes e nós... Bem, nós estávamos ocupados demais pra perceber. Aconteceu rápido, mas a pior parte é saber que não tão rápido que não perceberíamos nossa loucura. Quando finalmente tomamos nossos machados em mãos já era tarde demais, as florestas não paravam mais de crescer, era quase impossível cortar uma árvore, os animais já haviam crescido e mudado o bastante para serem chamados de monstros e começaram a nos desafiar. Impérios foram quebrados e seus cacos foram deixados à sua própria sorte.

Eventualmente conseguimos nos levantar. Começamos a encantar melhor nossas armas. Começamos a ser mais econômicos e criativos com nossos feitiços e com a ajuda deles desenvolvemos novas tecnologias. Mas até lá, tudo o que tinha sobrado eram poucas grandes cidades, milhares de vilarejos isolados e a natureza selvagem.

Atualmente, os magos não são mais aqueles piromaníacos do passado. Eles principalmente ajudam na produção de bens; alguns são ratos de oficina, sempre buscando novos problemas que possam ser resolvidos inventando alguma coisa. Outros seguem uma carreira mais acadêmica e focam suas atenções na investigação da Teoria da Energia Ambiental, ou outra coisa parecida.

Nerds, a maioria deles. No entanto, Nerds úteis!

Aqueles considerados úteis por suas cidades ou vilarejos geralmente ganham largas verbas pra experimentar e mexer nas coisas que quiserem, mas alguns deles costumam ir longe demais e sofrer as conseqüências. Não, eles não ficam loucos! Eles simplesmente se empolgam, buscam resultados rápidos e se esquecem das diretrizes da magia, derramando um pouco a mais de magia aqui ou ali. 

Os resultados costumam ser desde simples inconvenientes à catástrofes mortais. Vilarejos inteiros já encontraram seu fim simplesmente porque seu mago ficou um pouco animado demais com seus progressos.

E quem tem que limpar a bagunça quando as coisas dão errado? Caçadores. Caçadores são como a proteção que você coloca nas tomadas pro bebê não enfiar os dedos e causar um incêndio na casa. Bebês usando chapeis pontudos com estampa de luas e estrelas.

É preciso muito caráter pra se pegar uma espada e se sentar na borda da civilização observando os ermos.

Caçador é um termo genérico pra designar as pessoas que se especializam em proteger as cidades e vilarejos humanos contra a ameaça de monstros magicamente enriquecidos.
Em alguns locais é mandatório o serviço por um ou dois anos para os garotos, mas na maioria dos lugares por onde passei, a maioria deles é voluntários – talvez tenha algo a ver com os gordos salários que eles ganham. 

Caçadores geralmente estão intimamente ligados a uma cidade ou organização patrocinadora específica, sendo geralmente fixos a esse território, mas existem os que protegem rotas de comércio ou regiões particularmente valiosas. Aqueles que operam independentes são os mercenários, mas são essencialmente a mesma coisa, às vezes se desvinculam da vila por simples empreendedorismo, e às vezes só aprenderam o ofício por fora e ainda não encontraram um empregador pra assinar suas carteiras.

Eles são os únicos capazes de navegar no ambiente em constante mudança da floresta, e por isso, são os responsáveis por patrulhar as regiões, procurar outros assentamentos e até por coletar recursos exóticos da natureza. Eles não se importam, eles conhecem os riscos, eles sabem o que poderia acontecer. 

Eles também sabem que fazem sucesso com as mulheres aonde vão, e de quão cheias suas contas bancárias podem ficar.

Um novo vilarejo só consegue se estabelecer e atingir algum nível de desenvolvimento quando chega a um fino equilíbrio entre caçadores e magos. Magos demais? Seu vilarejo chamará a atenção dos monstros como um bolo de chocolate numa academia cheia de gordinhos. Caçadores demais? Seu vilarejo estará constantemente promovendo uma feira medieval, despeça-se dos banhos quentes, comida fresca e do papel higiênico.

Atualmente, a relação entre os dois grupos pode ficar muito tensa, especialmente por muitos de seus trabalhos demandarem cooperação.

Posso citar, pelo exemplo de um pôster de recrutamento visto numa cidade, " Mago precisa de caçadores jovens e corajosos! Torre de celular regional precisa de reparos, paga-se bem!". Tudo completamente normal, não fossem pelas letrinhas miúdas avisando sobre lagartos gigantes e a taxa de seguro contra desmembramento. Uma oportunidade unica para experimentar verdadeiras situações formadoras de longas e duradouras amizades, tenho certeza!

domingo, 28 de agosto de 2011

A Longa Viagem 2

- Capítulo 1: Sobre a fauna, a flora e aquilo que governa as duas

Numa época onde a informação é tão disponível e usada, até uma criança do jardim de infância sabe sobre os níveis de magia natural ao ambiente, bem como sabem da presença de Deuses reais no nosso mundo. Porém, em televisão, rádio ou jornal, nunca ouvimos sequer um pio sobre as implicações.

Como o leitor sabe, nosso mundo é principalmente coberto pela natureza, que aparece em todas suas formas, cores e sabores, sendo breve: planícies, florestas, pântanos e desertos – e qualquer grande projeto que tente avançar além de certos limites naturais geralmente acaba em um fracasso retumbante.

 O que se ensina na escola atualmente é a teoria da cadeia alimentar: plantas absorvem a magia residual do ambiente para crescer, herbívoros comem essas plantas e absorvem a magia, carnívoros por sua vez comem os herbívoros. A magia corre pela cadeia alimentar até que o seu membro mais superior morra e devolva a energia ao ambiente na decomposição, bem como acontece com os nutrientes – a diferença é que as energias arcanas fazem tudo crescer. E em grandes quantidades, as coisas crescem rápido, a vida selvagem em locais ricos em magia pode ser extremamente ameaçadora. Um colono inteligente mapeia essas regiões, constrói o mais longe possível e tenta não cortar nada em direção a elas.

A verdade, claro, é mais complexa do que isso. Os efeitos da magia em cada ser vivo tendem a ser muito particulares e regionais: enquanto para o senso comum há apenas o super crescimento, em regiões mais afastadas das cidades, pode-se sim ver porcos voarem.

Da mesma forma, qualquer tolo sabe da existência material de Deuses, mas sua real natureza geralmente é amplamente ignorada por pessoas “civilizadas”, povos das florestas e druidas são seus adoradores primários. Um exemplo da nossa ignorância está no deus mais amigável à civilização às nos ossos olhos, adorado por todos nós simplesmente como um deus da colheita, esquecendo que ela não favorece apenas nós seres humanos, mas a vida no geral.

Não é incomum ouvir histórias sobre divindades que se dedicam a forçar os assentamentos que construíram muito longe a respeitarem os limites agraciados a eles. As divindades não são gentis com nenhuma criatura que cresça além de suas próprias necessidades.

Deuses são muito caprichosos e perigosos! São seres compostos por pura magia ambiental, nascidos quando quantidades absurdas de energia se acumulam em partes intocadas da natureza. Raramente se vê um Deus, a menos que sua aventura o leve           muito, muito longe da civilização. Alguns dizem que            quando se vê um Deus nascendo, seu cérebro entra em colapso simplesmente por não ser capaz de compreender a forma divina ainda incompleta. Mas eu não colocaria fé nessa teoria, uma vez que existem os que digam que observar o nascimento de um deus pode lhe dar desde extrema boa sorte à cura de doenças terminais. Algumas pessoas, com os bolsos fundos o bastante, chegam até a organizar expedições pra esses encontros. Este escritor recomenda que seus leitores a não percam oportunidades e participem de uma expedição desse tido, se possível enviando relatos do ocorrido! (Esse escritor também não se responsabiliza pelos ferimentos e/ou morte dos que embarcarem em tais aventuras).

As divindades são extremamente protetoras com o conteúdo de seus “domínios”, elas vagam livremente todos os dias e parecem exercer alguma forma de controle sobre o crescimento por onde passam. E todos eles tem essa obsessão com a vida em todas suas formas, o equilíbrio, e blábláblá! Deuses parecem servir como um equalizador natural, impedindo que o crescimento de uma espécie sufoque outra, e ocasionalmente passando sabões na humanidade em geral.

A maioria dos assentamentos humanos em suas fases iniciais tendem a manter-se em constante estado de alerta, é difícil definir onde exatamente aparecerá a área designada pelo Deus – marcas raspadas no chão, ou uma clareira que se abre da noite para o dia, isso, claro se as marcas realmente chegam a aparecer. Nas tavernas de cidades de médio ou grande porte você pode encontrar homens que esperaram tais marcas em vão, mas conseguiram voltar pra casa. Eles são geralmente os grandalhões de rosto branco como papel e com as mãos sempre trêmulas em volta de um copo.

Os Deuses são verdadeiros aborrecimentos, mas, ao contrário do que seu nome indica, não é impossível matar um Deus. Tudo que é necessário é certo grau de preparação e pessoal qualificado. Como vocês acham que as cidades grandes ficaram desse tamanho e sobreviveram por tanto tempo? Ganhando a ira de panteões inteiros, e andando em uma perigosa corda bamba.

Em certa ocasião, o comboio no qual eu viajava passava por terras pantanosas, e no meio de um terreno de atoleiros fizemos uma parada num vilarejo que eu nunca tinha ouvido falar, chama-se Colina do Mel.

Até cheguei a fantasiar que aquele deveria ser um lugar famoso por seus doces e bebidas, mas mudei completamente de opinião quando desci da caravana e comecei a andar com minhas próprias pernas: o chão era de uma lama grudenta que a cada passo parecia criar sucção e fazer um barulho esquisito nos pés. E justamente estávamos lá pelo barro e argila retirado na região.

Pelo o que pude levantar, a vila vinha tendo problemas com um Deus desde que cavou um  novo poço de argila numa parte afastada no pântano; as pequenas construções que serviriam como alojamentos sumiam do dia pra noite, e o poço era parcialmente coberto, ninguém mais tinha coragem de trabalhar lá, quanto mais passar a noite no alojamento, tinham medo de sumir junto da madeira e dos pregos.

Cansados de viver a situação, o vilarejo, rico devido à rota de comércio, contratou uma equipe para matar o Deus do Pântano em questão, mercenários, auto intitulados como especialistas no serviço. Uma semana além do prazo, nenhum dos especialistas tinha voltado e todo o vilarejo  já pensava ter sido trapaceado pela metade do pagamento que os homens haviam recebido, até que tiveram notícias dos homens.

Grudado com barro seco, nun um tronco de árvore bem próximo dos portais de entrada da cidade, encontraram um caderno enlameado, um tipo de diário aparentemente. Eu o reproduzo em sua forma completa a seguir:


DIA 6 – Isso é completamente estúpido! Temos viajado ao norte da cidade por dias e eu não vi nenhum “Deus”, só monstros maiores e mais horríveis. Essa é a maior furada que Toma já nos meteu! Onde ele estava com a cabeça pegando um trabalho desses? Não há razão pra isso, nos estamos apenas andando em [Um mancha de água torna o  resto do texto ilegível]

DIA 12 – O pântano tem feito qualquer avanço ser quase impossível. Eu já tinha visto vegetação crescendo rápido antes, mas essa coisa... É mais rápida ainda! Corte uma vinha e em um minuto uma substituta cresceu no lugar, e então as cobras vão estar todas a sua volta, é como se a floresta estivesse retribuindo. Já perdemos cinco companheiros. Cinco homens bons que poderiam muito bem ter um trabalho de guarda, protegendo os muros de qualquer cidade, ao invés de estarem jogados na lama tentando matar um mito.


[um grande mancha de lama cobre um pedaço do jornal, com se o dono estivesse escrevendo e teve que se jogar e começar a correr de qualquer forma]...maldito monstro! Uma abominação, eu nunca vi algo parecido! Ele se movia rápido de mais, e nada parecia machucá-lo. Era uma coisa gigante, brilhava como se estivesse em chamas verdes, tinha algo como uma pessoa acorrentado a ele, mas acho que eram uma coisa só, perdemos oito homens praquela coisa. Sempre que tentamos flanqueá-lo ou fugir, toda a merda do pântano começava a crescer e bloqueava nosso caminho! Ele gritava, falava de equilíbrio, que éramos crianças mimadas, e aquele olho sempre [Outra mancha de lama]


SEPARADO. QUANTOS FUGIRAM? MIMADOS. TODOS SO-

[pequenas gotas de sangue]

A Longa Viagem

Enquanto existirem pessoas morando num lugar, elas vão querer de tempos em tempos ir pra outros lugares onde outras pessoas moram. 

Porém, não é o bastante que hajam estradas, viajantes devem ter relativa segurança (ou uma ilusão dela) para permitir que o comércio como conhecemos hoje exista. 

Infelizmente, estradas magicamente protegidas tendem a – por falta de uma palavra melhor – vazamentos. Elas atraem a “atenção” da floresta. Assim, a maioria das estradas é mantida por pequenos grupos itinerantes, equipes (algo mais próximo de gangues na verdade), contratadas para limpar e reparar os caminhos.

De tempos em tempos, quando os mercadores começam a não voltar de suas viagens, algumas grandes cidades enviam pequenas forças de assalto, bem treinados na arte de atrair qualquer coisa particularmente perigosa que esteja espreitando a estrada. 

Mercadores sempre viajam em comboios e caravanas, são ossos do ofício. Jovens valentes e com espírito para aventura sempre encontrarão trabalho como guardas nessas caravanas, mas não é uma tarefa fácil: as rotas normais de comércio costumam durar meses, e as caravanas que perdem menos que uma dúzia de homens podem se considerar com sorte. Se esse jovem conseguir voltar pra casa após uma rota, ou ele será um veterano de guerra, cheio de cicatrizes de batalha, histórias e calafrios à noite, ou ele será um cadáver no freezer da caravana do seu empregador, isso se seu empregador for do tipo sensível – lembrando que seu empregador será um mercador, ou seja, faça suas próprias deduções!

Passar a noite fora da estrada de forma alguma é recomendado. Por isso, em intervalos regulares, estão espalhados ao longo da estradas pequenos mosteiros fortificados ou pousadas muradas e bem defendidas. Os preços são elevados, e é de bom tom contribuir com o algum serviço de guarda quando se passar a noite. 

Um viajante em uma estrada bem conservada verá pouco dos horrores que se escondem na natureza, os refúgios podem ser poucos, mas ficam a poucas horas de viagem uns dos outros. Esses fortes hoteleiros chegam até capazes de dar algum certo grau de luxo para seus visitantes, o que torna alguns deles populares na cidade, vistos como locais para férias da alta sociedade atrás de aventuras exóticas.


Esses refúgios em especial são uma ótima oportunidade de emprego, um guarda de refúgio tem um salário substancial, mais que o bastante pra assegurar a aposentadoria de qualquer mercenário. Clientes nunca deixarão de voltar por causa de um talher sujo, ou de uma mancha no lençol, os refúgios, quando não são patrocinados pelas próprias ordens de comerciantes – seus maiores usuários – recebem subsídios das cidades próximas. 

Agora, um viajante em uma estrada selvagem, ah, esse aí é outra história! Mato alto e árvores! Vários cantinhos escuros que são potenciais esconderijos de ameaças à vida e aos seus dedos, braços ou outros membros destacáveis. Refúgios são poucos e geralmente auto-suficientes, mantidos tanto por uma inabalável determinação, quanto por uma sorte burra. Donos de refúgios independentes geralmente são homens que jamais se deram bem com a civilização, e muitos deles escondem segredos mais escuros que a própria floresta à noite.

Uma coisa todos os refúgios tem em comum: em todos os pontos de guarda, ou todos os pontos do muro que atraiam o olhar, estão diversos entalhes. Mensagens curtas, epitáfios para amigos que nunca tiveram o luxo de um túmulo. Pequenas orações, pequenos desejos entalhados na rocha ou na madeira, desafiando a ira selvagem ao redor. Claro, há também obscenidades, xingamentos e palavrões, afinal de contas, são soldados, não poetas afrescalhados.

Muitos anos atrás, um amigo meu começou a catalogar as pichações ao longo da velha estrada oeste para Forte da Alvorada ( uma cidade até movimentada, fica à dois meses de viagem ao sul, se você tiver a sorte de encontrar uma caravana indo naquela direção eu recomendo!).

Era um cara sensível, acabou ficando muito impressionado com o que estava lendo. Ele acabou fazendo seu caminho seguindo a escrita de uma pobre menina (ela tinha alguns floreios ou outros bem identificáveis, dizia ele) enquanto ela sobreviveu ataque após ataque naquela estrada. Disse que ela sobreviveu por duas rotas até Forte da Alvorada, estava na sua ultima quando foi atacada por um urso do tamanho de um prédio de dois andares, bem no caminho para casa com dinheiro para sua aposentadoria. Ele encontrou seu memorial três refúgios fora de sua cidade natal. E havia mais centenas de histórias como a dela, todas catalogadas por ele nas mais variadas estradas, passando por cidades que eu sequer tinha ouvido falar antes.

O rapaz se sentiu tão culpado depois disso, que se recusava a viajar. A última vez que eu fiquei sabendo dele foi quando voltou pra cá por um tempo, acho que veio só pra entregar o que tinha escrito – colocou tudo ele mesmo em minhas mãos, disse que o correio chega com muito sangue no selo.

Ele queria que eu publicasse sua obra, queria que as pessoas das cidades soubessem sobre o que está financiando suas vidinhas confortáveis na cidade... então eu fiz o que eu pude. Você está segurando o resultado.

-- Prefácio: “A Longa Viagem: Amor, vida e morte nas estradas” por Damien Davis.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Redwood


Eu chamo a tribuna o oficial da lei do condado, ilustríssimo senhor John Redwood. 

Um homem grisalho se levantou e sentou no banco no meio do tribunal. Já tinha idade o bastante pra cuidar do serviço administrativo nas delegacias, mas suas formas rústicas e o físico imponente denunciavam que continuava em serviço ativo. Parecia confortável na cadeira, e pelo jeito como olhava o advogado e os membros do tribunal, já tinha sentado naquele lugar mais do que só algumas vezes.

- Vocês se importam se eu fumar? -  Já estava enrolando um cigarro de palha antes de sentar na cadeira.

- De forma alguma. Sr. Redwood, por favor, onde o senhor se encontrava no intervalo de 23 de setembro à 28 de setembro? Lembrando que o senhor está em juramento perante esta corte e perante o próprio senhor Jesus Cristo todo poderoso.

- Estava nos ermos, tinha uma ordem de prisão do garoto Buckley. Assassinato – deu uma tragada – ficou louco, ou alguma coisa próxima disso. Dizem ter sido ópio ou bebida, pessoalmente eu apostaria nos dois.

- Uma caçada humana. – o promotor disse aos homens que sentavam nas cadeiras da corte - E quantos dias você demorou pra chegar até sua presa?

- Heh... Não sei de nenhuma besta que carregue um par de Smith & Wesson. – jogou a bituca de cigarro por cima do ombro.

- Por favor, responda a pergunta Sr.Redwood.

- Demorei dois dias pra encontrá-lo, tinha montado acampamento depois do rio próximo ao território dos índios, como eu esperava. Provavelmente ia cortar caminho por ali pra pegar a ferrovia à oeste, e depois disso ia sumir no mundo.

- O que você fez quando encontrou o acusado Jim Buckley? Por acaso pensou nos princípios constitucionais aos quais regem as diligências de seus serviços? Ou  será, que seu dedo coçou no gatilho não foi?

- Ao contrário do que os doutores poderiam pensar, não. Um homem adulto, e ainda mais do tamanho do garoto Buckley, geralmente pesa de 75 à 90 kgs. Atire num pobre coitado desses, e você tem que arrastar um peso morto de 3 bezerros de volta pra cidade, e tem que fazer isso antes do buraco de bala gangrenar. Acreditem quando eu digo, nós somos os primeiros a falar que atirar não é um bom negócio.

- Mas você não carregou ninguém quando voltou.

- Não. – deu uma risada rouca e sonora – As duas balas no meu ombro direito já estavam pesadas o bastante.

- Continue sua história.

- Eu avistei o acampamento do garoto, com mais bagagem do que alguém que fugiu correndo de casa levaria. O safado tinha até utensílios de casa, estava cozinhando um ensopado de coelho, ainda limpava o coelho usando um cutelo. – O homem tirou o chapéu e coçou a testa – Eu sabia que o juiz estava ausente, o julgamento iria demorar, então o serviço tinha que ser limpo.

- A morte tinha que ser limpa, você quer dizer?

- Não, justamente, não poderia machucá-lo muito. Ele poderia morrer entre as grades sem nunca ser nem acusado. – colocou o chapéu de volta – O que eu planejava era me aproximar dele na encolha, e enfiar aquela cara direto na panela fervendo.

- E o que aconteceu?

- Um imprevisto. Depois do primeiro mergulho na panela, bem quando eu deixei ele respirar um pouco pra segunda rodada, eu escutei um clique metálico na minha nuca.

O promotor folheou os papéis expostos num pedestal à sua frente.

- Eu chamo à tribuna a testemunha William Hastings.

Um jovem de cabelos negos usando muletas sentou com dificuldade no banco, mantinha um olhar baixo o tempo todo.

- Isso, era esse outro garoto. Provavelmente não teve bolas o suficiente pra correr sozinho, assassinos raramente tem. Bom, em resumo, eu deixei o garoto ir e pus as mãos ao alto, disse quem eu era, e que só estava ali por Buckley.

- Ele me disse pra não vacilar a mira do revolver, que ele tinha uma faca maior que o meu pau prontinha pra quando isso acontecesse. – o garoto disse como quem dedura algo à mãe.

O riso encheu todo o salão.

- Atenha-se apenas à confirmar o que lhe for questionado Sr. Hastings.

- Continuando. Disse a Hastings que ele poderia ir à forca por auxiliar na fuga de um procurado pela lei. Os garotos tiveram uma discussão, estavam assustados, nessa hora eu fui rápido o bastante pra cravar minha faca na bota de Hastings.

- O que nos leva a prova A. – O advogado levantou uma faca enorme da mesa, segurando-a por uma etiqueta, tinha um cabo simples de osso, e uma guarda no mesmo aço da lâmina, completamente arranhada, como se a muito fosse afiada em pedra bruta 

– Acho que não preciso dizer a ninguém desse tribunal qual é a sensação de ter o pé completamente perfurado por quase 30 cm de lâmina. Talvez precise dizer apenas que depois disso, esse jovem tem mais do que um bom motivo pra mancar pelo resto da vida.

- Talvez eu precise dizer aos doutores o que é ter o cano de uma arma apontada para sua nuca no meio dos ermos. Vislumbrar sua própria cova na terra seca, com formigas na boca e vermes nos pulmões quando o tempo comer seus... –

- Esse tribunal não está interessado com seus próprios temores pessoais Sr.Redwood, mantenha-se na questão relevante por favor. – O advogado foi rápido em cortar.

- Pois bem, Hastings começou a gritar, Buckley tomou a arma de suas mãos e me acertou duas vezes no ombro direito, uma terceira bala passou zunindo na minha orelha. Me arrastei pra trás de uma pedra e trocamos alguns tiros até as balas dele acabarem, eu disse que não precisava ser assim, que ele podia se render, que a lei é gentil com quem se rende, essa baboseira que a gente fala quando não consegue mirar direito por causa da dor.

- Então...  As balas acabaram. – Coçou o pescoço – Ele correu e subiu em um cavalo, eu alcancei o cutelo e peguei ele a uns 5 metros.

- Você atirou um cutelo num homem desarmado pelas costas?

- Claro! Você queria que eu jogasse no coitado do cavalo?

Mais risos brotaram no tribunal.

- Não ia ser eu que ia lembrar o idiota que ele tinha suas próprias duas pistolas carregadas ainda na cintura, provavelmente a gritaria do amigo fez ele esquecer das próprias calças.

- Enquanto isso um inocente se esvaia em sangue ao seu lado, bem ao alcance de sua potencial ajuda.

- Sim, bem ao alcance de minha ajuda. O rapaz que dois minutos atrás apontava o cano de um revólver para minha nuca. Nos dois praticamente disputávamos quem sangrava mais nessa hora.

- Então, Sr.Redwood, só para clarificar melhor a cena: você tinha um jovem com uma lesão corporal de natureza grave ao alcance de seu auxílio, que você recusava prestar, e agora tinha o cadáver de Jim Buckley a cinco metros da sua posição, morto com ferimento de lâmina nas costas. Sendo que, o corpo foi encontrado perto da fogueira, com claros sinais de luta.

- Eu nunca disse que ele morreu com o cutelo nas costas.

- A testemunha pode prestar seu testemunho e elucidar a questão? Tim Buckley estava ou não morto após o ferimento do cutelo?

William mantinha a cabeça abaixada, e até sua respiração parecia ter se silenciado.

- Posso lhe assegurar Sr. Hastings, esse tribunal é completamente capaz, buscamos apenas esclarecer as circunstâncias da morte de seu amigo e até onde o Sr.Redwood, enquanto agente estatal, foi envolvido.

- Ele não estava morto...

- Por favor, continue.

- O xerife não o matou, ele o arrastou pra perto da fogueira, disse que estávamos agora apreendidos pela lei, e começou a mexer nossas coisas, gritando onde escondíamos a corda. Foi quando Jim começou a gritar... – William tinha os olhos arregalados.

O promotor parecia perplexo. Com certeza não tinha lido nada disso em nenhuma 
pagina dos autos.

- Gritando de dor você quer dizer?

- Não... Jim ficou louco, ele disse que não se importava em ser preso ele... – Cada frase saía como se as palavras fossem espremidas pra fora do garoto.

- Se me permite, senhor promotor. -  interrompeu – O garoto começou a gritar nas minhas costas como sairia impune, como não faria diferença ser preso, tinha uma boa reputação, essa conversa mole de criminoso. Acredito que Hastings não sabia do que seu amigo estava correndo.

- A testemunha confirma essa versão?

William concordou com a cabeça e novamente baixou o rosto.

- O que realmente mudou a situação foi isso – John Redwood tirou um papel manchado do bolso e o desdobrou – Gostaria de ler isso para o tribunal:

Querido Jim,
Deixei um resto de almoço numa marmita pra você no fogão. Dê uma olhada nos seus irmãos e avó mais tarde.
Amor, Mamãe.

Podia-se ouvir um alfinete naquela sala. Um silêncio digno de uma madrugada de inverno.

- Agora, eu não sei a opinião dos senhores – deixou o papel sobre a mesa – Mas a justiça não é exatamente piedosa sabe? Da mesma forma que a natureza não é piedosa e a vida também não é nem um pouco gentil. Com certeza ela não foi com essa família.

O próprio promotor ouvia sem se mover, sua cabeça já havia feito a conexão.

- Eu encontrei esse bilhete em cima de uma mochila no fundo da barraca, perto de uma mochila lotada de pratarias e alguns maços de dinheiro. E nessa hora eu desejei por Deus que aquele fosse um moleque perdido nos vícios da vida, mesmo quando eu sabia que drogado nenhum podia ter aquele nível de planejamento.  – John tinha os olhos lacrimejados – Três crianças e uma senhora idosa. Por que motivo? Talvez se soubéssemos teríamos apenas mais raiva do ato.

Esfregou os olhos nas costas das mãos - E a mãe dele... Tire um filho de uma mãe, e para sempre você matou uma parte dessa mulher. Naquele dia ele tirou quatro filhos, incluindo ele próprio.

- Posso assumir então que você o abandonou à sorte de seu próprio ferimento.

- Como eu disse Sr. Promotor, a justiça não é exatamente piedosa. Tentei atirar nele, bem entre os olhos, e a arma travou. As vezes, o universo te coloca frente a frente com a morte, ou, no caso de você ser um criminoso, te coloca frente a frente com um agente da lei carregando apenas uma faca.

- Perdão, faca?

William por um momento deixou seu torpor

- Ele... Buscou ela do meu pé, me entregou a arma. Disse pra manter os olhos abertos ou iria perder a justiça sendo feita. Só ali eu entendi o que Jim tinha feito... Eu nunca pensei que...

- Acho que omiti a resposta da ultima pergunta Sr. Promotor. – John deixou o garoto sozinho com os próprios pensamentos - Sim, eu abandonei Jim Buckley à sorte de seu próprio ferimento, mas foi outro ferimento, um que eu podia confiar.

John pegou a faca na mesa em sua frente.

- De onde eu venho temos uma coisa chamada Peixe no Palito. Usam isso quando pescam em rios ou quando decidem assar algum porco grandalhão. – Gesticulou uma esfaqueada no ar – É quando você acerta bem na base da medula sabe? Perto de onde o cérebro fica. Dizem doer como o diabo se espetar errado ou muito devagar, mas fazendo rápido o bicho fica aleijado e morre sem dor.

Colocou a faca de volta na mesa.

- Só que eu nunca terminei de afundar a faca, não com a lâmina toda. E então, quando ele começou a se debater e a se dobrar, eu torci o cabo... Bem devagar.

Sussurros foram trocados. Algumas exclamações chocadas, outras simplesmente enojadas.

- Sinceramente, venho aqui e conto isso tudo com sinceridade, e a testemunha de vocês próprios confirma isso tudo. Acusem-me do que quiserem, mas em toda minha carreira, poucas são as vezes onde pude fazer a justiça pelas vítimas como nesse caso, por mais que meu próprio ombro me limitou de ficar lá, observando-o agonizar até morrer de fome.

O tribunal encerrou a sessão. Como ele esperava que iria encerrar. Provavelmente seria repreendido, mas ele já era repreendido com certa freqüência.

Bateu no ombro de William, e saiu pela grande porta escura. Crianças brincavam na rua, o ar estava seco, o sol brilhava quente num céu azul de brigadeiro e ele não sentia nada, só a mesma sensação fria nas mãos e no estômago.

Três crianças, uma idosa e uma mãe. Somou isso na cabeça enquanto atravessava a rua, eram tantas que sentiu vertigem ao tentar somar em dezenas.

Sentia as mãos grudentas quando entrou no saloon, então pediu um copo, e tentou ver até quando ele conseguiria impedir que o mantivessem cheio.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

O porquê de poesia ser uma merda

- Eu não tô especialmente poético hoje não.

- Para com isso, vai! Você sabe o que eu quero ouvir. Você sempre tem uma frase ou algum negócio!

- Sempre?! Tudo bem que você me conhece há pouco tempo, mas já viu eu falar merda o bastante por aí pra saber o que eu tenho. Você está bêbada. – Ela não estava.

- Pelas merdas mesmo que eu falo. Você pode ser bonitinho às vezes, e não é todo dia que posso te ver bêbado.

– Eu não to bêbado! – Ele estava. Incrivelmente. – Por que tem que ser tão complicado pra mim? Não dá só pra você sentar com as pernas roçando nas minhas, beber um pouquinho mais e me chamar pra dançar?

- E você lá iria dançar se eu te chamasse? Além do mais, eu te conheço, você veria graça em mim se eu fosse esse tipo de garota? – Ela fez uma careta com uma cara de mal humorada e disse com uma voz grossa idiota – “Não sei qual a diferença dessas meninas, são todas iguais.”

Ele tentou segurar um sorriso envergonhado. Ela realmente era interessante.

- Então, quer dizer que eu sei o que você quer ouvir... –  ele olhava agora para os joelhos dela através do fundo do copo, como um avaliador de jóias que analisa a rocha bruta antes de transformá-la em cristal lapidado – Mas você pode ter certeza absoluta que sei. Sei até o que  você nem sabe que quer ouvir ainda. – disse colocando o copo na mesa com um sorriso no canto da boca e um olhar malvado.

Ela cruzou os braços e levantou uma sobrancelha – Você realmente acha que me faz imaginar alguma coisa assim a toa? Se você quer que algum dia que eu chegue a sequer vislumbrar que você diga essas  outras coisas, pare de me enrolar e

- Suas formas... – Ele a interrompeu num tom grave e sereno, sepulcral o bastante pra lhe causar arrepios – Ou melhor, seu corpo como um todo. Seu corpo pra mim é... Real. Talvez, se tivesse que responder, diria que é a única coisa realmente física de todo esse lugar. – ele se aproximou dela e ergueu uma das mãos - mais material que minha própria pele, mais até que meus ossos ou o sangue que corre em minhas veias, tudo isso você tem iguais a mim.

E ainda sim... – Ele tomou a mão dela na sua e manuseou cada dedo dela com os seus próprios – ainda sim, o toque em você não é nenhuma ficção, eu posso sentir todas essas coisas bem aqui. Por que isso?  
Ele soltou suas mãos e olhava fixamente em seus olhos, aproximando seus rostos. - Alguma coisa corre em você, alguma coisa sensível demais para ser notado diretamente. Essa coisa está em casa vírgula, cada ar que você toma pra soltar uma frase nova. Algo que nos fazem cercar você como insetos circulam uma lâmpada.

- O problema é estar ocupado demais me perdendo nessas duas luzes verdes e me distrair – ele lhe afagou a face – esquecer que na verdade elas são lâmpadas. Lembrando tarde demais pra não me queimar.

Ele se afastou. Os olhos dela faiscavam na penumbra do bar e ela apoiou o queixo em uma mão.

- Isso foi... De onde você tirou isso?

- Eu lá leio poesia pra tirar isso de algum lugar?! Eu inventei. Agora mesmo. – Ele procurava a carteira nos bolsos sem olhar pra ela. – Mas isso não quis dizer nada sabe?

- Não dá pra você ficar calado e me deixar aqui suspirando te colocando no nível desse negócio todo? – Disse sorrindo cínica.

- Tive duvida entre essas frases aí, ou alguma coisa sobre chamar seus cabelos de cascata morena e seus ombros de pedras do rio, sei lá, não pensei muito bem nessa outra. Sério, só veio do topo da minha mente.

Ele olhou pra ela, e sentiu seu peito esfriar um pouco. Era normal pra ele em se tratando dela.

- Eu não preciso dar um nome pra montanha pra saber que ela é alta. Nem preciso entrar na chuva pra saber que ela irá me molhar. São palavras vazias, qualquer um pode fazer sem nunca ter visto um botão de flor abrir, nunca ter caminhado na praia de noite ou visto o sol nascer numa montanha. Acredite, ninguém tem saco pra essas coisas.

Estava impresso em seu rosto, ela estava pronta pra se levantar e procurar um canto com mais pessoas.

- Olha, só queria descrever você como, outra!

- Me descrever como outra?! – Ela repetiu num tom de raiva

- O outra era pro garçom, ele estava fingindo não me ver. Eu só queria descrever você como você, e não dá pra fazer isso.

Mais uma dose de alguma coisa foi servida no copo dele, e ele se levantou, com suas coisas já arrumadas nas costas. Ele bebeu o copo.

- E quem sou eu pra te falar se você se parece com uma flor ou um animal? Quanto mais a uma estrela ou algum arco iris sei lá. Já viu pessoas comparando outras pessoas a arco iris? Eu também não vi, mas deve ser muito bizarro. Sei lá, eu nem te conheço direito ainda. Vai que você se parece na verdade com um minério ou algum tipo de bactéria? Não podemos restringir tanto nossos leques de opções.

Ele caminhou até o lado dela da mesa para se despedir puxando-a pela mão para se levantar. No meio do caminho as pernas dela bambearam tanto quanto as dele. E não era pelo álcool.

- Eu tenho que ir, tenho uma aula de você-não-quer-saber-o-que daqui a uma ou duas horas. Te encontro amanhã perto da máquina de café. Procure por alguém de óculos escuros tomando aspirina.

Ela se sentou com o coração ainda palpitando. Tocou os lábios com as pontas do dedo, se perguntava se algum de seus amigos tinha visto toda a cena. Podia sentir o amargo da bebida e alguma coisa não identificável vinda do copo d(ele).

E o tempo todo ela  não conseguia parar de pensar que queria ouvir o que ele diria sobre uma série de coisas que ela ainda nem sabia que queria ouv – Filho da puta...!