quarta-feira, 15 de junho de 2011

Redwood


Eu chamo a tribuna o oficial da lei do condado, ilustríssimo senhor John Redwood. 

Um homem grisalho se levantou e sentou no banco no meio do tribunal. Já tinha idade o bastante pra cuidar do serviço administrativo nas delegacias, mas suas formas rústicas e o físico imponente denunciavam que continuava em serviço ativo. Parecia confortável na cadeira, e pelo jeito como olhava o advogado e os membros do tribunal, já tinha sentado naquele lugar mais do que só algumas vezes.

- Vocês se importam se eu fumar? -  Já estava enrolando um cigarro de palha antes de sentar na cadeira.

- De forma alguma. Sr. Redwood, por favor, onde o senhor se encontrava no intervalo de 23 de setembro à 28 de setembro? Lembrando que o senhor está em juramento perante esta corte e perante o próprio senhor Jesus Cristo todo poderoso.

- Estava nos ermos, tinha uma ordem de prisão do garoto Buckley. Assassinato – deu uma tragada – ficou louco, ou alguma coisa próxima disso. Dizem ter sido ópio ou bebida, pessoalmente eu apostaria nos dois.

- Uma caçada humana. – o promotor disse aos homens que sentavam nas cadeiras da corte - E quantos dias você demorou pra chegar até sua presa?

- Heh... Não sei de nenhuma besta que carregue um par de Smith & Wesson. – jogou a bituca de cigarro por cima do ombro.

- Por favor, responda a pergunta Sr.Redwood.

- Demorei dois dias pra encontrá-lo, tinha montado acampamento depois do rio próximo ao território dos índios, como eu esperava. Provavelmente ia cortar caminho por ali pra pegar a ferrovia à oeste, e depois disso ia sumir no mundo.

- O que você fez quando encontrou o acusado Jim Buckley? Por acaso pensou nos princípios constitucionais aos quais regem as diligências de seus serviços? Ou  será, que seu dedo coçou no gatilho não foi?

- Ao contrário do que os doutores poderiam pensar, não. Um homem adulto, e ainda mais do tamanho do garoto Buckley, geralmente pesa de 75 à 90 kgs. Atire num pobre coitado desses, e você tem que arrastar um peso morto de 3 bezerros de volta pra cidade, e tem que fazer isso antes do buraco de bala gangrenar. Acreditem quando eu digo, nós somos os primeiros a falar que atirar não é um bom negócio.

- Mas você não carregou ninguém quando voltou.

- Não. – deu uma risada rouca e sonora – As duas balas no meu ombro direito já estavam pesadas o bastante.

- Continue sua história.

- Eu avistei o acampamento do garoto, com mais bagagem do que alguém que fugiu correndo de casa levaria. O safado tinha até utensílios de casa, estava cozinhando um ensopado de coelho, ainda limpava o coelho usando um cutelo. – O homem tirou o chapéu e coçou a testa – Eu sabia que o juiz estava ausente, o julgamento iria demorar, então o serviço tinha que ser limpo.

- A morte tinha que ser limpa, você quer dizer?

- Não, justamente, não poderia machucá-lo muito. Ele poderia morrer entre as grades sem nunca ser nem acusado. – colocou o chapéu de volta – O que eu planejava era me aproximar dele na encolha, e enfiar aquela cara direto na panela fervendo.

- E o que aconteceu?

- Um imprevisto. Depois do primeiro mergulho na panela, bem quando eu deixei ele respirar um pouco pra segunda rodada, eu escutei um clique metálico na minha nuca.

O promotor folheou os papéis expostos num pedestal à sua frente.

- Eu chamo à tribuna a testemunha William Hastings.

Um jovem de cabelos negos usando muletas sentou com dificuldade no banco, mantinha um olhar baixo o tempo todo.

- Isso, era esse outro garoto. Provavelmente não teve bolas o suficiente pra correr sozinho, assassinos raramente tem. Bom, em resumo, eu deixei o garoto ir e pus as mãos ao alto, disse quem eu era, e que só estava ali por Buckley.

- Ele me disse pra não vacilar a mira do revolver, que ele tinha uma faca maior que o meu pau prontinha pra quando isso acontecesse. – o garoto disse como quem dedura algo à mãe.

O riso encheu todo o salão.

- Atenha-se apenas à confirmar o que lhe for questionado Sr. Hastings.

- Continuando. Disse a Hastings que ele poderia ir à forca por auxiliar na fuga de um procurado pela lei. Os garotos tiveram uma discussão, estavam assustados, nessa hora eu fui rápido o bastante pra cravar minha faca na bota de Hastings.

- O que nos leva a prova A. – O advogado levantou uma faca enorme da mesa, segurando-a por uma etiqueta, tinha um cabo simples de osso, e uma guarda no mesmo aço da lâmina, completamente arranhada, como se a muito fosse afiada em pedra bruta 

– Acho que não preciso dizer a ninguém desse tribunal qual é a sensação de ter o pé completamente perfurado por quase 30 cm de lâmina. Talvez precise dizer apenas que depois disso, esse jovem tem mais do que um bom motivo pra mancar pelo resto da vida.

- Talvez eu precise dizer aos doutores o que é ter o cano de uma arma apontada para sua nuca no meio dos ermos. Vislumbrar sua própria cova na terra seca, com formigas na boca e vermes nos pulmões quando o tempo comer seus... –

- Esse tribunal não está interessado com seus próprios temores pessoais Sr.Redwood, mantenha-se na questão relevante por favor. – O advogado foi rápido em cortar.

- Pois bem, Hastings começou a gritar, Buckley tomou a arma de suas mãos e me acertou duas vezes no ombro direito, uma terceira bala passou zunindo na minha orelha. Me arrastei pra trás de uma pedra e trocamos alguns tiros até as balas dele acabarem, eu disse que não precisava ser assim, que ele podia se render, que a lei é gentil com quem se rende, essa baboseira que a gente fala quando não consegue mirar direito por causa da dor.

- Então...  As balas acabaram. – Coçou o pescoço – Ele correu e subiu em um cavalo, eu alcancei o cutelo e peguei ele a uns 5 metros.

- Você atirou um cutelo num homem desarmado pelas costas?

- Claro! Você queria que eu jogasse no coitado do cavalo?

Mais risos brotaram no tribunal.

- Não ia ser eu que ia lembrar o idiota que ele tinha suas próprias duas pistolas carregadas ainda na cintura, provavelmente a gritaria do amigo fez ele esquecer das próprias calças.

- Enquanto isso um inocente se esvaia em sangue ao seu lado, bem ao alcance de sua potencial ajuda.

- Sim, bem ao alcance de minha ajuda. O rapaz que dois minutos atrás apontava o cano de um revólver para minha nuca. Nos dois praticamente disputávamos quem sangrava mais nessa hora.

- Então, Sr.Redwood, só para clarificar melhor a cena: você tinha um jovem com uma lesão corporal de natureza grave ao alcance de seu auxílio, que você recusava prestar, e agora tinha o cadáver de Jim Buckley a cinco metros da sua posição, morto com ferimento de lâmina nas costas. Sendo que, o corpo foi encontrado perto da fogueira, com claros sinais de luta.

- Eu nunca disse que ele morreu com o cutelo nas costas.

- A testemunha pode prestar seu testemunho e elucidar a questão? Tim Buckley estava ou não morto após o ferimento do cutelo?

William mantinha a cabeça abaixada, e até sua respiração parecia ter se silenciado.

- Posso lhe assegurar Sr. Hastings, esse tribunal é completamente capaz, buscamos apenas esclarecer as circunstâncias da morte de seu amigo e até onde o Sr.Redwood, enquanto agente estatal, foi envolvido.

- Ele não estava morto...

- Por favor, continue.

- O xerife não o matou, ele o arrastou pra perto da fogueira, disse que estávamos agora apreendidos pela lei, e começou a mexer nossas coisas, gritando onde escondíamos a corda. Foi quando Jim começou a gritar... – William tinha os olhos arregalados.

O promotor parecia perplexo. Com certeza não tinha lido nada disso em nenhuma 
pagina dos autos.

- Gritando de dor você quer dizer?

- Não... Jim ficou louco, ele disse que não se importava em ser preso ele... – Cada frase saía como se as palavras fossem espremidas pra fora do garoto.

- Se me permite, senhor promotor. -  interrompeu – O garoto começou a gritar nas minhas costas como sairia impune, como não faria diferença ser preso, tinha uma boa reputação, essa conversa mole de criminoso. Acredito que Hastings não sabia do que seu amigo estava correndo.

- A testemunha confirma essa versão?

William concordou com a cabeça e novamente baixou o rosto.

- O que realmente mudou a situação foi isso – John Redwood tirou um papel manchado do bolso e o desdobrou – Gostaria de ler isso para o tribunal:

Querido Jim,
Deixei um resto de almoço numa marmita pra você no fogão. Dê uma olhada nos seus irmãos e avó mais tarde.
Amor, Mamãe.

Podia-se ouvir um alfinete naquela sala. Um silêncio digno de uma madrugada de inverno.

- Agora, eu não sei a opinião dos senhores – deixou o papel sobre a mesa – Mas a justiça não é exatamente piedosa sabe? Da mesma forma que a natureza não é piedosa e a vida também não é nem um pouco gentil. Com certeza ela não foi com essa família.

O próprio promotor ouvia sem se mover, sua cabeça já havia feito a conexão.

- Eu encontrei esse bilhete em cima de uma mochila no fundo da barraca, perto de uma mochila lotada de pratarias e alguns maços de dinheiro. E nessa hora eu desejei por Deus que aquele fosse um moleque perdido nos vícios da vida, mesmo quando eu sabia que drogado nenhum podia ter aquele nível de planejamento.  – John tinha os olhos lacrimejados – Três crianças e uma senhora idosa. Por que motivo? Talvez se soubéssemos teríamos apenas mais raiva do ato.

Esfregou os olhos nas costas das mãos - E a mãe dele... Tire um filho de uma mãe, e para sempre você matou uma parte dessa mulher. Naquele dia ele tirou quatro filhos, incluindo ele próprio.

- Posso assumir então que você o abandonou à sorte de seu próprio ferimento.

- Como eu disse Sr. Promotor, a justiça não é exatamente piedosa. Tentei atirar nele, bem entre os olhos, e a arma travou. As vezes, o universo te coloca frente a frente com a morte, ou, no caso de você ser um criminoso, te coloca frente a frente com um agente da lei carregando apenas uma faca.

- Perdão, faca?

William por um momento deixou seu torpor

- Ele... Buscou ela do meu pé, me entregou a arma. Disse pra manter os olhos abertos ou iria perder a justiça sendo feita. Só ali eu entendi o que Jim tinha feito... Eu nunca pensei que...

- Acho que omiti a resposta da ultima pergunta Sr. Promotor. – John deixou o garoto sozinho com os próprios pensamentos - Sim, eu abandonei Jim Buckley à sorte de seu próprio ferimento, mas foi outro ferimento, um que eu podia confiar.

John pegou a faca na mesa em sua frente.

- De onde eu venho temos uma coisa chamada Peixe no Palito. Usam isso quando pescam em rios ou quando decidem assar algum porco grandalhão. – Gesticulou uma esfaqueada no ar – É quando você acerta bem na base da medula sabe? Perto de onde o cérebro fica. Dizem doer como o diabo se espetar errado ou muito devagar, mas fazendo rápido o bicho fica aleijado e morre sem dor.

Colocou a faca de volta na mesa.

- Só que eu nunca terminei de afundar a faca, não com a lâmina toda. E então, quando ele começou a se debater e a se dobrar, eu torci o cabo... Bem devagar.

Sussurros foram trocados. Algumas exclamações chocadas, outras simplesmente enojadas.

- Sinceramente, venho aqui e conto isso tudo com sinceridade, e a testemunha de vocês próprios confirma isso tudo. Acusem-me do que quiserem, mas em toda minha carreira, poucas são as vezes onde pude fazer a justiça pelas vítimas como nesse caso, por mais que meu próprio ombro me limitou de ficar lá, observando-o agonizar até morrer de fome.

O tribunal encerrou a sessão. Como ele esperava que iria encerrar. Provavelmente seria repreendido, mas ele já era repreendido com certa freqüência.

Bateu no ombro de William, e saiu pela grande porta escura. Crianças brincavam na rua, o ar estava seco, o sol brilhava quente num céu azul de brigadeiro e ele não sentia nada, só a mesma sensação fria nas mãos e no estômago.

Três crianças, uma idosa e uma mãe. Somou isso na cabeça enquanto atravessava a rua, eram tantas que sentiu vertigem ao tentar somar em dezenas.

Sentia as mãos grudentas quando entrou no saloon, então pediu um copo, e tentou ver até quando ele conseguiria impedir que o mantivessem cheio.

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