Quando era mais novo, eu costumava ser escoteiro, já contei pra você sobre isso? Bom, se não contei, não importa, nem todos os distintivos e marshmellows assados do mundo me deixariam confortável numa floresta hoje em dia.
Como
exercício de fim de ano, nosso escoteiro mestre decidiu levar um pequeno grupo
dos escoteiros mais novos pra uma caminhada noturna pela floresta, eu tinha 11
anos na época.
Iríamos caminhar três ou quatro kilometros
mata à dentro, o que dava mais ou menos uma caminhada de 45 minutos longe do
acampamento mais próximo, supostamente, ser largado no mato à noite deveria nos
ajudar a pensar sobre a vida e definir nossos futuros objetivos de vida.
Saímos do
acampamento às 11 da noite, todos com lanternas e mochilas em mãos, andávamos
em um grupo desordenado, com o professor guiando o caminho.
Quando já
tinhamos nos embrenhado bastante na mata,
as pessoas começaram a ser largadas pra trás, isso funcionava da
seguinte forma: a cada 1 km mais ou menos o professor chamava o nome de alguém
do grupo, você entregava sua lanterna pra ele e sentava no escuro sozinho,
esperando o grupo voltar pra te buscar. Como eu havia dito, ficar sozinho na
mata deveria ser relaxante, ajudaria a pessoa a se acalmar e refletir, fora que
no fim do passeio você receberia uma honra ou qualquer coisa que o valha.
Subíamos
por uma trilha que cortava uma mata fechada montanhosa. A vegetação não era tão
espessa em volta do caminho, com rochas, árvores mais jovens e alguns troncos
caídos, andávamos sempre por um trecho elevado de terra, com duas descidas
fortes dos dois lados, no escuro daquela noite e com aquela vegetação, poderiam
muito bem ser abismos sem fundo até onde eu sei.
Mesmo
andando por uma trilha elevada, em poucos trechos do caminho as árvores davam
abertura para o céu, as copas mais altas se encontravam e, por grande parte do
percurso, tínhamos um teto de folhas sobre nossas cabeças.
Era junho,
então ventava e estava frio. Conforme o grupo vazia seu caminho, o chão coberto
por folhas e galhos secos estalava e anunciava nossa presença.
Meu nome foi chamado e, sem cerimônias, o professor
pegou minha lanterna, guardou em sua mochila e o resto do grupo continuou
andando. Eu fui a sexta pessoa, de um grupo de dez, então eu estava bem no meio
do caminho de todo mundo.
Assim que
fiquei sozinho no escuro, como qualquer
pessoa normal, eu obviamente comecei a me cagar de medo. Sentado nas raízes de
uma árvore, numa noite escura sem lua, meus sentidos começaram a ficar super
sensíveis. Eu podia sentir o cheiro verde das plantas da floresta, sentia
também o frio que faz na mata a noite, como se uma neblina gélida fosse solta
das árvores – lembro de imaginar que nesse momento minhas orelhas pareciam
gigantes, uma mexida de leve dos meus pés no chão de mata pilheira parecia o
som de alguém mexendo uma sacola no cinema, uma cacofonia de insetos cantava
por toda a minha volta.
Ironicamente,
enquanto pensava nas minhas orelhas, escutei um galho se partir. Em volta de mim, só se enxergava o breu, os
olhos abertos ou fechados não faziam a mínima diferença , mas eu me virei para
olhar de qualquer forma. Me lembrei que eu tinha um esqueiro na mochila e
resolvi acendê-lo pra me consolar no escuro. Péssima idéia. Assim que acendi,
as coisas começaram a piorar.
Comecei a
escutar as vozes do meu grupo conversando, como se eles já estivessem voltando
pra me buscar, mas estavam ainda bem longe. O vento as vezes soprava forte e o
barulho do balançar das copas das árvores cobria as vozes, me fazendo pensar
que elas eram apenas o que minha cabeça queria ouvir naquele momento.
O vento resolveu dar uma trégua, e,
indiscutivelmente, vindo em minha direção pela trilha, pude ouvir o som de
diversos passos e o murmurinho de conversa. Eu me virei em direção ao som,
ainda sentado, ansioso pela luz das lanternas, porém, não enxerguei nada.
O esqueiro
me queimava os dedos, então por várias vezes eu o apagava e acendia de novo.
Fiz isso diversas vezes, vezes o bastante para notar que em nenhum momento as
pessoas pareciam estar se aproximando de onde eu estava, mesmo, aparentemente,
andando diretamente em minha direção.
Comecei a
ficar nervoso, e reparei quão má idéia era ter uma luz acesa enquanto estava
sozinho numa floresta tão escura que sequer via a mão na frente da cara –
resolvi apagar o esqueiro e escutar.
O cantar
dos insetos era absurdo, vinha de todos os lados, como se eu estivesse numa
nuvem deles. As árvores acompanhavam a barulheira num farfalhar frenético,
balançando e sacudindo ao ritmo de um vento uivante que subia a serra.
Poucos
minutos se passaram, quando no meio da barulheira escutei a voz do meu
professor me chamando. Sua voz vinha de uma das encostas da trilha, de dentro
da mata, completamente fora da trilha. Ele gritava meu nome, dizendo que tinha
acontecido um problema, que eu deveria me apressar e seguir pra onde ele
estava. As árvores sacudiam suas folhas
e batiam os galhos, como se uma tempestade fosse cair a qualquer momento, a
mata respirava um ar frio na trilha.
Por um
momento me levantei de onde estava e comecei a tatear o chão, buscando um ponto
de apoio para me sentar na encosta e descer, todo o clima era de pânico, eu
tinha que sair dali naquele instante! Mas minhas pernas não se moviam.
Eu pensei
no resto do grupo, ainda haviam várias pessoas que foram deixadas antes de mim,
o que aconteceria com elas quando essa tempestade caisse?
Nessa hora,
tive um calafrio, sentindo como se meu estômago caísse num poço sem fundo. As
copas das árvores se mexiam como loucas, porém, não havia qualquer vento.
Meu rosto suava frio, porém, mesmo com todo o
movimento das árvores, sequer uma brisa soprava naquela hora, o céu estava
limpo e o clima seco. As árvores e mexiam e sacudiam uma sobre as outras com
vigor, sem qualquer razão, cobrindo tudo com folhas secas que caiam como flocos
de neve.
Meu professor continuava me chamando em um tom
desesperado, agora dizia estar ferido e pedia socorro. Cada palavra que eu conseguia entender por
cima da barulheira da floresta me faziam encolher bem onde eu estava, o tom
desesperado dava lugar a grunhidos e gritos. O que eu escutava, cada vez mais
se distanciava do que é uma voz, soava como meu professor, mas definitivamente
não era uma voz.
É realmente dificil descrever um som que ouvi
a tanto tempo atrás, o mais próximo que posso chegar é uma daquelas gravações
que as pessoas fazem de seus cachorros, onde o grunhido do cachorro parece uma
palavra. Os humanos parecem ter um ritmo na fala, não sei bem se é a dicção, é
algo que, se não está lá, torna a coisa simplesmente estranha.
Se ainda sim você não sabe do que eu estou
falando, procure gravações de gritos de rapoza e imagine um deles vindo a mais
ou menos de um trinta metros de mata fechada, no breu da madrugada.
Isso continuou por alguns minutos, quando
derrepente, um silêncio repentino tomou conta da floresta. Não haviam mais
insetos e as árvores estavam inertes, como se nada houvesse acontecido, mesmo
usando casaco naquela hora, nunca senti tanto frio na vida.
Agachei onde eu estava abaixado, como que para
tentar ouvir mais longe, mas parecia não haver criatura viva naquela floresta.
Tão
derrepente quanto havia parado, o barulho voltou em toda sua potência e, da
encosta de onde escutava a voz, vinha um
chafurdar de folhas e quebra de galhos. Alguma coisa se aproximava, alguma
coisa parecia empurrar toda a floresta para abrir passagem, era grande, e
estava vindo exatamente pra onde eu estava.
Eu não
aguentei mais, me levantei e corri pela trilha de volta, em direção à última
pessoa que foi deixada antes de mim. Eu sentia meu coração batendo no pescoço e
o suor frio me escorria pelas costas, mesmo correndo, eu sentia as pernas
moles.
Nem lembrei
que carregava uma mochila de 5kg nessa hora, corria como se meus pés tivessem
asas (o que realmente deviam ter), lembro de ter tropeçado três ou quatro vezes
e quase continuado correndo de quatro. O som das folhas que se levantavam às
minhas pisadas me faziam imaginar que seja lá o que fosse, estava bem atrás de
mim (o que realmente estava).
Seja
lá o que fosse, me acompanhava pela
encosta da trilha quase que emparelhado, quebrando galhos e folha lá embaixo,
quebrava troncos e parecia trazer consigo todo o som ensurdecedor que a
floresta fazia naquele momento.
Desnecessário dizer que tantos anos depois,
mesmo depois de correr com minha mulher para a maternidade e com a minha mãe
para o hospital, esse continua sendo o kilômetro mais longo de toda minha vida.
Eu
finalmente cheguei ao meu colega, e, como eu, ele também estava em pânico. Nós
não trocamos nenhuma palavra, mas só de olhar um pro outro, naquele momento
sabíamos exatamente o que estava acontecendo.
Nós sentamos juntos, ombro à ombro, tremendo
como vara verde, ele empunhava seu canivete com as duas mãos. Lentamente, os
sons da floresta pareceram se acalmar, como um carro que passa bozinando na rua
até seu som sumir virando o quarteirão. As árvores estavam imóveis e poucos
grilos cantavam, comecei a sentir calor e até tirei minha jaqueta.
Pouco tempo
depois vimos lanternas e escutamos pessoas gritando e fazendo piadas.
Percebemos aliviados que era o professor com nosso grupo de escoteiros, e ele
não estava nem um pouco feliz deu ter saído do lugar onde ele tinha me deixado,
mas poucas vezes na minha vida estive tão feliz em ver alguém.
Quando
voltamos aos dormitórios do acampamento, nosso grupo trocou histórias sobre o
passeio, especialmente sobre o que tínhamos visto naquela noite.
Além de mim e do cara antes de mim, pra onde
eu corri, dois outros largados por último tinham ouvido as mesmas coisas e, da
mesma forma, também tinham entrado em pânico.
O professor logo desfez o murmurinho que se
espalhava pelo acampamento, ele dizia que o escuro faz a nossa imaginação nos
pregar peças, ele nos faz ver e ouvir coisas que não estão lá.
Já se passaram quase vinte anos desde que isso
aconteceu e, embora eu concorde muito com o que ele diz, não importa o aperto
que eu tenha passado na vida, minha imaginação nunca me faz passar pelo medo
que eu senti naquela noite na trilha.
Porém,
embora não tivesse ouvido nada de estranho, o último garoto do grupo, o número
10, contou algo muito interessante: depois de pegar sua lanterna, o professor
disse que ia continuar na trilha e desligar a própria luz, participando também
da mesma atividade, em meia hora ele voltaria pra buscá-lo e juntos eles iriam
descer a trilha e buscar o resto do grupo.
Segundo o garoto, ele mal ficou sozinho, talvez tenha sentado lá por
10 minutos, sua bunda mal tinha se acomodado na pedra que escolhera, quando
surgiu o professor descendo a trilha: estava pálido como um floco de neve e
vinha num passo apressado. Ele tinha uma lanterna em cada mão e disse quase
gritando que era hora de ir embora.
O garoto
foi praticamente arrastado pela trilha em direção ao acampamento. Disse que até
chegou a tentar brilhar a lanterna atrás deles, olhando pra onde veio o
mestre, mas um frio na barriga e os palavrões que o professor lhe soltou foram
covencimento o bastante pra sair correndo dali.
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