sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Palavra de escoteiro


Quando era mais novo, eu costumava ser escoteiro, já contei pra você sobre isso? Bom, se não contei, não importa, nem todos os distintivos e marshmellows assados do mundo me deixariam confortável numa floresta hoje em dia.

Como exercício de fim de ano, nosso escoteiro mestre decidiu levar um pequeno grupo dos escoteiros mais novos pra uma caminhada noturna pela floresta, eu tinha 11 anos na época.

 Iríamos caminhar três ou quatro kilometros mata à dentro, o que dava mais ou menos uma caminhada de 45 minutos longe do acampamento mais próximo, supostamente, ser largado no mato à noite deveria nos ajudar a pensar sobre a vida e definir nossos futuros objetivos de vida.

Saímos do acampamento às 11 da noite, todos com lanternas e mochilas em mãos, andávamos em um grupo desordenado, com o professor guiando o caminho.

Quando já tinhamos nos embrenhado bastante na mata,  as pessoas começaram a ser largadas pra trás, isso funcionava da seguinte forma: a cada 1 km mais ou menos o professor chamava o nome de alguém do grupo, você entregava sua lanterna pra ele e sentava no escuro sozinho, esperando o grupo voltar pra te buscar. Como eu havia dito, ficar sozinho na mata deveria ser relaxante, ajudaria a pessoa a se acalmar e refletir, fora que no fim do passeio você receberia uma honra ou qualquer coisa que o valha.

Subíamos por uma trilha que cortava uma mata fechada montanhosa. A vegetação não era tão espessa em volta do caminho, com rochas, árvores mais jovens e alguns troncos caídos, andávamos sempre por um trecho elevado de terra, com duas descidas fortes dos dois lados, no escuro daquela noite e com aquela vegetação, poderiam muito bem ser abismos sem fundo até onde eu sei. 

Mesmo andando por uma trilha elevada, em poucos trechos do caminho as árvores davam abertura para o céu, as copas mais altas se encontravam e, por grande parte do percurso, tínhamos um teto de folhas sobre nossas cabeças.

Era junho, então ventava e estava frio. Conforme o grupo vazia seu caminho, o chão coberto por folhas e galhos secos estalava e anunciava nossa presença.

Meu nome  foi chamado e, sem cerimônias, o professor pegou minha lanterna, guardou em sua mochila e o resto do grupo continuou andando. Eu fui a sexta pessoa, de um grupo de dez, então eu estava bem no meio do caminho de todo mundo.

Assim que fiquei sozinho no escuro, como  qualquer pessoa normal, eu obviamente comecei a me cagar de medo. Sentado nas raízes de uma árvore, numa noite escura sem lua, meus sentidos começaram a ficar super sensíveis. Eu podia sentir o cheiro verde das plantas da floresta, sentia também o frio que faz na mata a noite, como se uma neblina gélida fosse solta das árvores – lembro de imaginar que nesse momento minhas orelhas pareciam gigantes, uma mexida de leve dos meus pés no chão de mata pilheira parecia o som de alguém mexendo uma sacola no cinema, uma cacofonia de insetos cantava por toda a minha volta. 

Ironicamente, enquanto pensava nas minhas orelhas, escutei um galho se partir.  Em volta de mim, só se enxergava o breu, os olhos abertos ou fechados não faziam a mínima diferença , mas eu me virei para olhar de qualquer forma. Me lembrei que eu tinha um esqueiro na mochila e resolvi acendê-lo pra me consolar no escuro. Péssima idéia. Assim que acendi, as coisas começaram a piorar.

Comecei a escutar as vozes do meu grupo conversando, como se eles já estivessem voltando pra me buscar, mas estavam ainda bem longe. O vento as vezes soprava forte e o barulho do balançar das copas das árvores cobria as vozes, me fazendo pensar que elas eram apenas o que minha cabeça queria ouvir naquele momento.

 O vento resolveu dar uma trégua, e, indiscutivelmente, vindo em minha direção pela trilha, pude ouvir o som de diversos passos e o murmurinho de conversa. Eu me virei em direção ao som, ainda sentado, ansioso pela luz das lanternas, porém, não enxerguei nada.

O esqueiro me queimava os dedos, então por várias vezes eu o apagava e acendia de novo. Fiz isso diversas vezes, vezes o bastante para notar que em nenhum momento as pessoas pareciam estar se aproximando de onde eu estava, mesmo, aparentemente, andando diretamente em minha direção.

Comecei a ficar nervoso, e reparei quão má idéia era ter uma luz acesa enquanto estava sozinho numa floresta tão escura que sequer via a mão na frente da cara – resolvi apagar o esqueiro e escutar.

O cantar dos insetos era absurdo, vinha de todos os lados, como se eu estivesse numa nuvem deles. As árvores acompanhavam a barulheira num farfalhar frenético, balançando e sacudindo ao ritmo de um vento uivante que subia a serra.

Poucos minutos se passaram, quando no meio da barulheira escutei a voz do meu professor me chamando. Sua voz vinha de uma das encostas da trilha, de dentro da mata, completamente fora da trilha. Ele gritava meu nome, dizendo que tinha acontecido um problema, que eu deveria me apressar e seguir pra onde ele estava.  As árvores sacudiam suas folhas e batiam os galhos, como se uma tempestade fosse cair a qualquer momento, a mata respirava um ar frio na trilha.

Por um momento me levantei de onde estava e comecei a tatear o chão, buscando um ponto de apoio para me sentar na encosta e descer, todo o clima era de pânico, eu tinha que sair dali naquele instante! Mas minhas pernas não se moviam.

Eu pensei no resto do grupo, ainda haviam várias pessoas que foram deixadas antes de mim, o que aconteceria com elas quando essa tempestade caisse?

Nessa hora, tive um calafrio, sentindo como se meu estômago caísse num poço sem fundo. As copas das árvores se mexiam como loucas, porém, não havia qualquer vento.

 Meu rosto suava frio, porém, mesmo com todo o movimento das árvores, sequer uma brisa soprava naquela hora, o céu estava limpo e o clima seco. As árvores e mexiam e sacudiam uma sobre as outras com vigor, sem qualquer razão, cobrindo tudo com folhas secas que caiam como flocos de neve.

 Meu professor continuava me chamando em um tom desesperado, agora dizia estar ferido e pedia socorro.  Cada palavra que eu conseguia entender por cima da barulheira da floresta me faziam encolher bem onde eu estava, o tom desesperado dava lugar a grunhidos e gritos. O que eu escutava, cada vez mais se distanciava do que é uma voz, soava como meu professor, mas definitivamente não era uma voz.

 É realmente dificil descrever um som que ouvi a tanto tempo atrás, o mais próximo que posso chegar é uma daquelas gravações que as pessoas fazem de seus cachorros, onde o grunhido do cachorro parece uma palavra. Os humanos parecem ter um ritmo na fala, não sei bem se é a dicção, é algo que, se não está lá, torna a coisa simplesmente estranha.

 Se ainda sim você não sabe do que eu estou falando, procure gravações de gritos de rapoza e imagine um deles vindo a mais ou menos de um trinta metros de mata fechada, no breu da madrugada.
 Isso continuou por alguns minutos, quando derrepente, um silêncio repentino tomou conta da floresta. Não haviam mais insetos e as árvores estavam inertes, como se nada houvesse acontecido, mesmo usando casaco naquela hora, nunca senti tanto frio na vida.

 Agachei onde eu estava abaixado, como que para tentar ouvir mais longe, mas parecia não haver criatura viva naquela floresta. 

Tão derrepente quanto havia parado, o barulho voltou em toda sua potência e, da encosta de onde escutava a voz,  vinha um chafurdar de folhas e quebra de galhos. Alguma coisa se aproximava, alguma coisa parecia empurrar toda a floresta para abrir passagem, era grande, e estava vindo exatamente pra onde eu estava.

Eu não aguentei mais, me levantei e corri pela trilha de volta, em direção à última pessoa que foi deixada antes de mim. Eu sentia meu coração batendo no pescoço e o suor frio me escorria pelas costas, mesmo correndo, eu sentia as pernas moles. 

Nem lembrei que carregava uma mochila de 5kg nessa hora, corria como se meus pés tivessem asas (o que realmente deviam ter), lembro de ter tropeçado três ou quatro vezes e quase continuado correndo de quatro. O som das folhas que se levantavam às minhas pisadas me faziam imaginar que seja lá o que fosse, estava bem atrás de mim (o que realmente estava).

Seja lá  o que fosse, me acompanhava pela encosta da trilha quase que emparelhado, quebrando galhos e folha lá embaixo, quebrava troncos e parecia trazer consigo todo o som ensurdecedor que a floresta fazia naquele momento.

 Desnecessário dizer que tantos anos depois, mesmo depois de correr com minha mulher para a maternidade e com a minha mãe para o hospital, esse continua sendo o kilômetro mais longo de toda minha vida.

Eu finalmente cheguei ao meu colega, e, como eu, ele também estava em pânico. Nós não trocamos nenhuma palavra, mas só de olhar um pro outro, naquele momento sabíamos exatamente o que estava acontecendo. 

 Nós sentamos juntos, ombro à ombro, tremendo como vara verde, ele empunhava seu canivete com as duas mãos. Lentamente, os sons da floresta pareceram se acalmar, como um carro que passa bozinando na rua até seu som sumir virando o quarteirão. As árvores estavam imóveis e poucos grilos cantavam, comecei a sentir calor e até tirei minha jaqueta.

Pouco tempo depois vimos lanternas e escutamos pessoas gritando e fazendo piadas. Percebemos aliviados que era o professor com nosso grupo de escoteiros, e ele não estava nem um pouco feliz deu ter saído do lugar onde ele tinha me deixado, mas poucas vezes na minha vida estive tão feliz em ver alguém.

Quando voltamos aos dormitórios do acampamento, nosso grupo trocou histórias sobre o passeio, especialmente sobre o que tínhamos visto naquela noite.

 Além de mim e do cara antes de mim, pra onde eu corri, dois outros largados por último tinham ouvido as mesmas coisas e, da mesma forma, também tinham entrado em pânico.

 O professor logo desfez o murmurinho que se espalhava pelo acampamento, ele dizia que o escuro faz a nossa imaginação nos pregar peças, ele nos faz ver e ouvir coisas que não estão lá.

 Já se passaram quase vinte anos desde que isso aconteceu e, embora eu concorde muito com o que ele diz, não importa o aperto que eu tenha passado na vida, minha imaginação nunca me faz passar pelo medo que eu senti naquela noite na trilha.

Porém, embora não tivesse ouvido nada de estranho, o último garoto do grupo, o número 10, contou algo muito interessante: depois de pegar sua lanterna, o professor disse que ia continuar na trilha e desligar a própria luz, participando também da mesma atividade, em meia hora ele voltaria pra buscá-lo e juntos eles iriam descer a trilha e buscar o resto do grupo.

 Segundo o garoto, ele  mal ficou sozinho, talvez tenha sentado lá por 10 minutos, sua bunda mal tinha se acomodado na pedra que escolhera, quando surgiu o professor descendo a trilha: estava pálido como um floco de neve e vinha num passo apressado. Ele tinha uma lanterna em cada mão e disse quase gritando que era hora de ir embora. 

O garoto foi praticamente arrastado pela trilha em direção ao acampamento.  Disse que até  chegou a tentar brilhar a lanterna atrás deles, olhando pra onde veio o mestre, mas um frio na barriga e os palavrões que o professor lhe soltou foram covencimento o bastante pra sair correndo dali.

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