domingo, 28 de agosto de 2011

A Longa Viagem

Enquanto existirem pessoas morando num lugar, elas vão querer de tempos em tempos ir pra outros lugares onde outras pessoas moram. 

Porém, não é o bastante que hajam estradas, viajantes devem ter relativa segurança (ou uma ilusão dela) para permitir que o comércio como conhecemos hoje exista. 

Infelizmente, estradas magicamente protegidas tendem a – por falta de uma palavra melhor – vazamentos. Elas atraem a “atenção” da floresta. Assim, a maioria das estradas é mantida por pequenos grupos itinerantes, equipes (algo mais próximo de gangues na verdade), contratadas para limpar e reparar os caminhos.

De tempos em tempos, quando os mercadores começam a não voltar de suas viagens, algumas grandes cidades enviam pequenas forças de assalto, bem treinados na arte de atrair qualquer coisa particularmente perigosa que esteja espreitando a estrada. 

Mercadores sempre viajam em comboios e caravanas, são ossos do ofício. Jovens valentes e com espírito para aventura sempre encontrarão trabalho como guardas nessas caravanas, mas não é uma tarefa fácil: as rotas normais de comércio costumam durar meses, e as caravanas que perdem menos que uma dúzia de homens podem se considerar com sorte. Se esse jovem conseguir voltar pra casa após uma rota, ou ele será um veterano de guerra, cheio de cicatrizes de batalha, histórias e calafrios à noite, ou ele será um cadáver no freezer da caravana do seu empregador, isso se seu empregador for do tipo sensível – lembrando que seu empregador será um mercador, ou seja, faça suas próprias deduções!

Passar a noite fora da estrada de forma alguma é recomendado. Por isso, em intervalos regulares, estão espalhados ao longo da estradas pequenos mosteiros fortificados ou pousadas muradas e bem defendidas. Os preços são elevados, e é de bom tom contribuir com o algum serviço de guarda quando se passar a noite. 

Um viajante em uma estrada bem conservada verá pouco dos horrores que se escondem na natureza, os refúgios podem ser poucos, mas ficam a poucas horas de viagem uns dos outros. Esses fortes hoteleiros chegam até capazes de dar algum certo grau de luxo para seus visitantes, o que torna alguns deles populares na cidade, vistos como locais para férias da alta sociedade atrás de aventuras exóticas.


Esses refúgios em especial são uma ótima oportunidade de emprego, um guarda de refúgio tem um salário substancial, mais que o bastante pra assegurar a aposentadoria de qualquer mercenário. Clientes nunca deixarão de voltar por causa de um talher sujo, ou de uma mancha no lençol, os refúgios, quando não são patrocinados pelas próprias ordens de comerciantes – seus maiores usuários – recebem subsídios das cidades próximas. 

Agora, um viajante em uma estrada selvagem, ah, esse aí é outra história! Mato alto e árvores! Vários cantinhos escuros que são potenciais esconderijos de ameaças à vida e aos seus dedos, braços ou outros membros destacáveis. Refúgios são poucos e geralmente auto-suficientes, mantidos tanto por uma inabalável determinação, quanto por uma sorte burra. Donos de refúgios independentes geralmente são homens que jamais se deram bem com a civilização, e muitos deles escondem segredos mais escuros que a própria floresta à noite.

Uma coisa todos os refúgios tem em comum: em todos os pontos de guarda, ou todos os pontos do muro que atraiam o olhar, estão diversos entalhes. Mensagens curtas, epitáfios para amigos que nunca tiveram o luxo de um túmulo. Pequenas orações, pequenos desejos entalhados na rocha ou na madeira, desafiando a ira selvagem ao redor. Claro, há também obscenidades, xingamentos e palavrões, afinal de contas, são soldados, não poetas afrescalhados.

Muitos anos atrás, um amigo meu começou a catalogar as pichações ao longo da velha estrada oeste para Forte da Alvorada ( uma cidade até movimentada, fica à dois meses de viagem ao sul, se você tiver a sorte de encontrar uma caravana indo naquela direção eu recomendo!).

Era um cara sensível, acabou ficando muito impressionado com o que estava lendo. Ele acabou fazendo seu caminho seguindo a escrita de uma pobre menina (ela tinha alguns floreios ou outros bem identificáveis, dizia ele) enquanto ela sobreviveu ataque após ataque naquela estrada. Disse que ela sobreviveu por duas rotas até Forte da Alvorada, estava na sua ultima quando foi atacada por um urso do tamanho de um prédio de dois andares, bem no caminho para casa com dinheiro para sua aposentadoria. Ele encontrou seu memorial três refúgios fora de sua cidade natal. E havia mais centenas de histórias como a dela, todas catalogadas por ele nas mais variadas estradas, passando por cidades que eu sequer tinha ouvido falar antes.

O rapaz se sentiu tão culpado depois disso, que se recusava a viajar. A última vez que eu fiquei sabendo dele foi quando voltou pra cá por um tempo, acho que veio só pra entregar o que tinha escrito – colocou tudo ele mesmo em minhas mãos, disse que o correio chega com muito sangue no selo.

Ele queria que eu publicasse sua obra, queria que as pessoas das cidades soubessem sobre o que está financiando suas vidinhas confortáveis na cidade... então eu fiz o que eu pude. Você está segurando o resultado.

-- Prefácio: “A Longa Viagem: Amor, vida e morte nas estradas” por Damien Davis.

Um comentário:

  1. Bacana demais! Eu mesmo tenho dificuldades de criar personagens com esse tipo de humor e consegui imaginar muito bem você narrando essa história! hahahaha

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